Cronista no volante, perigo constante

É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, um rico entrar no reino dos céus ou Jair Bolsonaro colocar o Brasil no time dos países de primeiro mundo vendendo miçangas de nióbio para o oriente do que eu, desajeitado que sou, conseguir conduzir elegantemente um veículo automotor por trezentos metros que sejam.

Se os hebreus demoraram mesmo quarenta anos para atravessar o deserto do Sinai, tenha certeza: eles estavam atrás de mim, e eu estava de carro.

Minha inaptidão para dirigir é quase lendária e há muito tempo passei a fase da vergonha. Encaro a coisa quase como uma característica física, assim como o rosto ossudo, a magreza atávica, a altura desproporcional, os cabelos indomáveis. Não  há o que se possa fazer, então apenas dou de ombros e sigo em frente. Não sou um camarada dado a fatalismos, mas, é forçoso admitir, há coisas que são o que são, e nem toda a força de vontade do mundo pode mudar isso, é uma perda de tempo obscena insistir.

Nunca pude ser um motorista nem ao menos tolerável. Não é algo facilmente explicável. Basta que eu sente atrás de um volante para que fique imediatamente distraído, angustiado, querendo que tudo termine logo e me deixem relaxar.

O meio-rodismo deve estar inscrito em meus ossos. No sangue é que não está. Minha família, desde sempre, produziu exímios motoristas. Meu pai trabalhou como caminhoneiro praticamente a vida inteira. Meus tios foram caminhoneiros. Meu irmão foi caminhoneiro. Acelerar por aí com os cabelos ao vento ouvindo Milionário & José Rico sempre nos pareceu a coisa mais natural do mundo, até que vim ao mundo eu, um iconoclasta, para mostrar que tradições existem para serem quebradas e desculpas esfarrapadas são a serventia da casa.

Meu pai, o seu Dilceu (assim mesmo, com “l”, porque o nome esquisito é o nosso laço primeiro), vive às voltas com esse desgosto: o primogênito para o qual ele não conseguiu transmitir seu legado, um filho incapaz de reunir coordenação motora suficiente para manejar ao mesmo tempo um freio e uma embreagem, impossibilitado de sair por aí com os cabelos ao vento ouvindo Milionário & José Rico sem colocar em risco todo e qualquer ser vivo num raio de quilômetros.

Não que eu não possa dirigir, aqui e ali, em casos de extrema necessidade. Já aconteceu, e aos 25 anos cheguei inclusive a tirar a carteira de habilitação, quase obrigado por minha mãe, sempre inconformada com minha inapetências para a vida, e a prova definitiva de que ter autorização para fazer uma coisa e saber de fato fazer aquela coisa podem ser coisas diametralmente opostas – uma prova, também, de que o modelo de avaliação dos instrutores do Detran precisa ser urgentemente revisto antes que uma tragédia de grande magnitude aconteça.

Quando enfim passei no teste e consegui a carteira, amigos se reuniram boquiabertos e desesperados. Em vigília, passaram a aguardar para muito breve a inversão dos pólos magnéticos, a chuva de enxofre e o restante do cronograma de atividades do fim do mundo. Por ora, nada disso ainda aconteceu, e lá se vão uns bons seis anos, mas estou certo de que naquele dia eu desencadeei uma sucessão de eventos ainda insondáveis ao cabo dos quais todos nós nos arrependeremos amargamente.

Ao menos eu posso gabar-me por aí de não contribuir tanto assim com a poluição do planeta ou em deixar o cotidiano de nossas grandes cidades ainda mais impraticável. Viva rápido, morra cedo, diz a famigerada frase de Oscar Wilde. E no intervalo que sobrar ainda pegue um intransponível engarrafamento na Treze de Maio no fim de uma quinta-feira. Mas não eu.

Não eu.

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