Como o antifascismo chegou às polícias do Paraná

Movimento surgiu há três anos e ganhou corpo após a eleição de Bolsonaro

O delegado carioca Orlando Zaccone pediu um capuccino, para fazer frente ao frio de 9ºC que se abatia sobre Curitiba, naquele início de noite de 5 de junho. Em um café insuspeito no Centro da capital paranaense, aquele era o primeiro encontro dele com os outros três homens sentados à mesa, com quem vinha trocando mensagens nas semanas anteriores. Eram eles: um delegado da Polícia Civil, um aspirante a oficial da Polícia Militar e um ex-bombeiro, todos do Paraná. Mesmo antes de a prosa engrenar, Zaccone levantou um brinde. Nos dias que se seguiram, aquele pequeno grupo estabeleceria as bases para a chegada em terras paranaenses do “Policiais Antifascismo” – movimento surgido há três anos em outros estados e que começou a ganhar corpo após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL).

“Nós estamos botando o dedo na ferida”, disse Zaccone aos novos colegas, resumindo os propósitos do movimento. Não é para a menos. O “Policiais Antifascismo” tem em seu cerne a articulação para que o policial passe a ser reconhecido como trabalhador, não como um soldado. Parece simples, mas esse é o ponto de partida para que a discussão tome uma dimensão cidadã. A reboque, essa perspectiva traz outras questões que mexem nas estruturas das forças de segurança de todo o país, como a desmilitarização, o questionamento ao uso da força por parte do Estado e o direto a manifestações, além de um cardápio de pautas progressistas, como o antiproibicionismo das drogas, inclusão da mulher, a igualdade racial e respeito aos policiais LGBTI dentro das corporações.

“Se o fascismo é operado dentro da polícia, não é por conta de os policiais serem fascistas, mas por conta de um sistema sustentado por uma política fascista. O policial não participa da formulação da política. Muito pelo contrário. Os policiais de base estão totalmente alijados da possibilidade de construir a política [de atuação das corporações]. Eles só reproduzem o comando”, aponta Zaccone. “Nós temos que nos voltar contra esse sistema, não contra a pessoa que o opera”, completou.

Extermínio e desmilitarização

O que o delegado diz tem base científica. Em seu doutorado em Ciência Política, por exemplo, Zaccone se debruçou sobre os autos de resistência – que é como são registradas as mortes provocadas por policiais sob alegação de que a vítima resistiu à abordagem. Ele viu que, na prática, a maioria esmagadora – quase a totalidade – desses casos são arquivados em razão do local em que ocorrem (na favela ou periferia) e pelo fato de o cidadão morto ter tido passagem pela polícia. Na conclusão de Zaccone, o Estado tem usado essas justificativas para esconder o que ele chama de “uma política de extermínio”, em corrente com todas as instituições judiciárias.

“É uma política de extermínio. Você tem o MP [Ministério Público] arquivando os autos de extermínio, a Justiça lavando as mãos. É o Estado homologando a violência contra a pessoa da favela. E isso não é visto pela sociedade como um crime. Então é injusto você jogar esse ônus todo na conta do policial, que está operando algo que é aplaudido pela sociedade e que está sendo legitimado pelo Estado de Direito”, apontou. “A discussão toda acaba se centrando não sobre como a polícia agiu, mas em relação a quem a polícia agiu. Se o morto for um morador de preferência, que tenha passagem pela polícia, parece que para o Estado está tudo bem. E isso a gente combate”, acrescentou.

Para o movimento, essa chamada “política de extermínio” está diretamente relacionada à militarização das corporações – ou seja, ao fato de as polícias militares serem reconhecidas como força auxiliar do Exército. Na avaliação de Zaccone, isso coloca o policial na condição de um mero cumpridor de ordens e executor da política de Estado, seja qual for. Por isso, o “Policiais Antifascismo” considera tão importante a desmilitarização das forças de segurança – definida, em síntese, pela desvinculação ao Exército, abrindo caminho para que o policial seja visto como um cidadão comum.

Zaccone: luta para policiais serem reconhecidos como trabalhadores. Reprodução/Instagram.

“O estatuto militar coloca os policiais, hoje, em uma condição de sub-cidadania. O policial não pode ter sindicato, carteira assinada, não pode ter filiação partidária, não pode fazer greve e pode ser preso por qualquer besteira, como não bater continência a um superior na rua”, disse. “Hoje, o policial de base – seja na Polícia Civil ou na Militar – só vai ascender a um posto de comando, se fizer um outro concurso público, se entrar por outra porta. Tudo isso faz com que o policial não se veja como um formulador da política. Ele sempre vai ser um nada dentro da corporação”, apontou.

Para o “Policiais Antifascismo”, a militarização (que consagra as polícias como braço armado do Estado) e os desvios de conduta (manifestados em execuções) jogaram os agentes de segurança em um limbo, em que são desprezados pela direita e odiados pela esquerda. Por isso, o movimento defende a abertura de um diálogo permanente com a sociedade, principalmente dos movimentos sociais. Zaccone, por exemplo, só vê perspectiva de mudanças a partir disso.

“Foram construídos dois estereótipos: de que a polícia é assassina e corrupta. Hoje, a esquerda nos odeia e a direita nos vê como seus cachorros de guarda. A polícia foi jogada nas mãos da direita”, observou Zaccone. “Eu estou há 20 anos na polícia e sei que a maioria não está envolvida nem em atos de corrupção, nem em violência. Ou seja, mais uma vez, não é o policial, é a instituição. A gente só vai  mudar alguma coisa quando os movimentos progressistas começaram a defender pautas da construção do policial como trabalhador”, complementou.

Pautas progressistas

A partir da proposta dessa virada, o “Policiais Antifascismo” carrega consigo uma agenda progressista das mais amplas e que pode parecer impensável a quem vê a polícia de fora. Em uma dinâmica em que os agentes vivem às voltas na “guerra contra o tráfico”, o movimento prega a descriminalização e legalização das drogas. Talvez até porque Zaccone e os primeiros quadros tenham militado na Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição (Leap-Brasil), entidade que era formada por delegados, juízes e promotores e que deixou de existir no ano passado.

Desde a fundação do movimento antifascismo, as outras demandas surgiram de forma quase espontânea, a partir de angústias e anseios dos próprios policiais. Hoje, o “Policiais Antifascismo” tem integrantes como o delegado Mário Leony, de Sergipe, e o agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Fabrício Rosa, de Goiás, que são ativistas LGBTI dentro das corporações. Paralelamente, o grupo empunha bandeiras, como a igualdade de gênero e contra o racismo nas forças de segurança.

“Como você vai falar para o policial ser um garantidor de direitos LGBTI, se dentro da própria corporação os LGBTI são massacrados? Da mesma forma, tem a questão das mulheres, que já sofrem um preconceito imenso na corporação, como se fossem menos polícia que os homens. Isso sem falar na questão do assédio”, apontou Zaccone. “E tem a questão racial. Na base das PMs, por exemplo, está uma maioria negra. É um preto fardado matando um preto favelado”, resumiu.

Atuação

Após a consolidação do movimento, o “Policiais Antifascismo” passou a se articular de forma simples: a partir de Facebook e de WhatsApp. Há um grupo principal fechado em cada uma dessas redes, que tem abrangência nacional, com o objetivo de discutir pontos que sejam comuns a forças de segurança de todo o país. Paralelamente, o movimento tem apostado em grupos estaduais, em que os integrantes possam definir formas de atuação específicas, de acordo com demandas mais locais.

Hoje, o “Policiais Antifascismo” está disseminado por 12 estados, com uma forma maior no Nordeste – em Pernambuco, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte –, Rio de Janeiro e São Paulo. O movimento conta com a participação de 629 integrantes, espalhados por todas as forças de segurança, incluindo 20 militares das Forças Armadas. Outras mais de 9 mil pessoas estão no grupo como apoiadores, entre advogados, universitários, professores e operadores do direito. O movimento começou a se robustecer ao longo da última campanha presidencial e ganhou ainda mais corpo após a eleição de Bolsonaro.

“É como se fosse uma reação nossa. [A eleição de Bolsonaro] aglutinou o movimento”, definiu Zaccone.

Movimento antifascismo já se espalhou por 12 estados brasileiros. Divulgação.

A estratégia do movimento é de que os policiais passem, mesmo, a exercer militância. A intenção é de que os agentes deem mais a cara, participando de manifestações públicas e concedendo entrevistas em on (se identificando). Na manifestação do último 14 de junho, por exemplo, integrantes do “Policiais Antifascismo” foram às ruas de Curitiba, identificados com faixas e camisetas do movimento. O mesmo tem ocorrido em outros estados, como Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro.

“O que me deixou atônito foi que as pessoas viam a faixa e ficavam em choque, como se um policial ser antifascismo fosse uma coisa surpreendente, quando deveria ser natural. Isso serve pra gente refletir qual a visão que as pessoas têm da polícia, qual a imagem que os policiais estão passando até para suas famílias”, disse o aspirante Martel Alexandre Del Colle, da PM do Paraná.

O movimento é suprapartidário, mas alguns de seus integrantes são filiados a partidos, principalmente os alinhados à esquerda. Zaccone, Leony e Rosa, por exemplo, são do PSol, legenda pela qual se lançaram como candidatos a deputado federal de seus respectivos estados.

No Paraná

Nos dias seguintes à visita de Zaccone, o “Policiais Antifascimo” já arrebanhava 17 agentes em Curitiba. Hoje, já são cerca de 50 policiais vinculados ao movimento, não só de Curitiba, mas também do interior. Pedro Felipe – o delegado da Polícia Civil que participou da primeira reunião com Zaccone, relatada no início desta matéria – vê que há perspectivas para o grupo continue em expansão no estado. Para isso, eles apostam principalmente na ampliação dos debates dentro das corporações.

“A gente acredita que através das nossas pautas, cada vez mais, os policiais vão entender a profundidade de o que é a segurança pública. É muito além do que fazer arminha com a mão e dizer que bandido bom é bandido morto”, disse o delegado. “A nossa pauta é de defesa como policial como um trabalhador. Queremos ser vistos como trabalhadores e respeitados como tais. Não queremos ser vistos como heróis, que têm que se matar 24 horas por dia, 7 dias por semana, sem direito a hora-extra, sem direito a benefícios trabalhistas…”, acrescentou.

A exemplo do que ocorre no restante do Brasil, os integrantes do movimento também devem “dar mais a cara” aqui no Paraná. Ou seja, o “Policiais Antifascismo” deve estar cada vez mais presente em manifestações e em debates públicos. Os membros do grupo sabem, no entanto, que estarão sujeitos a perseguições e retaliações.

O aspirante Martel conhece bem essa dinâmica. Quando foi destacado para o Batalhão de Polícia Escolar, em Curitiba, questionou a metodologia empregada pelo Proerd – tudo com base em pesquisas científicas relacionadas ao programa. Como consequência, passou a ser perseguido e transferido para o Litoral do Paraná. Durante as eleições, fez uma postagem em redes sociais, apontando que era “ilusão” que Bolsonaro resolveria os problemas da segurança pública e questionando a eficácia de promessas, como a de armar a população. Em 24 horas, Martel teve que se apresentar à Corregedoria da PM. Em duas semanas, estava transferido novamente.

Protesto em Alagoas: Nordeste tem maior concentração de integrantes do grupo. Divulgação.

“Se você não gostar do Bolsonaro, se não for a favor de que todo esquerdista é um terrorista em potencial, você terá uma vida muito difícil na polícia. Mas eu ainda sou aspirante a oficial. Os cabos, soldados e sargentos têm uma vida muito mais difícil. É até hipócrita eu falar da minha dor, se eu não falar da dor deles. Se eu fosse um soldado, eu ia ser transferido não para o litoral, mas pra Mongólia. Eles [os oficiais] teriam destruído minha vida muito mais do que destruíram”, disse o aspirante.

Agora, os integrantes do “Policiais Antifascismo” veem no movimento uma alternativa e uma possibilidade de emancipação das forças de segurança. Se por um lado eles sabem que haverá tentativas de retaliação, por outro abre-se a perspectiva de começar a reformar as forças policiais em sua estrutura.

“Nesse momento de acirramento político extremado, sempre há preconceitos, mas que precisam ser enfrentados. Isso só vai ser enfrentado com informações e debates, mas a gente não pode se furtar nem se acovardar a debater. A gente vai propor um debate democrático dentro das instituições”, apontou Pedro Felipe.

“Existem muitos policiais que se estão sendo oprimidos dentro da polícia, que não concordam com o que está acontecendo. Por não terem voz, acabam se calando e parece que toda a polícia concorda com o que está acontecendo. A gente quer mudar isso”, acrescentou Martel.

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1 comentário em “Como o antifascismo chegou às polícias do Paraná”

  1. Wellington Dias Moreira

    Boa noite. Eu já vinha acompanhando a pauta política do movimento antifascista. Já era possível perceber que a luta desses policiais será árdua, grande, mas não há como não ser cheio de glórias. As conquistas virão!

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