Livro narra história de personagem marginalizada do próprio romance

Romance de estreia do poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores, História de Joia é um mosaico do Brasil atual

Uma mulher negra e periférica, marginalizada da própria literatura que narra sua história: assim é História de Joia, primeiro romance do tradutor e poeta Guilherme Gontijo Flores, lançado pela editora Todavia. Ao longo das 81 páginas, a personagem principal, Joia, parece escapar por entre os diálogos e acontecimentos de uma ambientação que tenta abarcar – de forma crítica – as complexidades do momento que vivemos.

O desconforto é inevitável – o leitor se pegará, a cada novo capítulo, procurando por Joia. Uma tarefa árdua em meio às narrativas humanas que ali se instauram: seja pela linguagem única de cada indivíduo, seja pela apresentação de discursos, valores, e diferentes representatividades dos muitos narradores. “Não me parecia razoável fazer um romance tradicional para fazer crítica social de uma posição que não é a minha. Me parecia mais importante talvez mobilizar uma série de personagens e tentar entender o que é estar na margem de um determinado discurso”, salienta o autor.

Cada um dos 22 capítulos apresenta diferentes vozes: fragmentos da vida de pessoas outras, que atravessam a vida da protagonista, muita vezes de forma indireta e aleatória. Do dono da mercearia na periferia, passando por vozes infantis, e até mesmo um cachorro, o resultado é um vasto e intricado mosaico literário, cheio de surpresas e descobertas. “Chamei isso de ‘narrativa em negativo’, porque ela acaba sendo uma espécie de paisagem constante, está sempre na voz dos outros –  às vezes recebe mais atenção, a depender de quem narra e do tipo de vínculo que estabelece com a Joia”, afirma Gontijo.

Embora a falta de uma certa continuidade em relação aos temas e pontos de vista possa parecer um incômodo, a narrativa se sustenta na sequência temporal dos acontecimentos. No chegar, no sair, no ônibus da ida, na duração do trabalho, no ônibus da volta: é nos pequenos acontecimentos corriqueiros, e na sua universalidade, que o livro conduz a história. Em meio ao dia que transcorre, uma série de sutilezas e contrapontos mostram temáticas ainda mais abrangentes: questões de gênero, lugar de fala, machismo, e inúmeras outras discussões presentes no Brasil atual.

As ferramentas para a construção da obra também foram inúmeras, e bem atuais: os arcanos maiores do tarô dão nome aos capítulos, e funcionaram para a organização da narrativa; uma postagem do Facebook também compõe as colagens presentes no livro, assim como uma passagem da Bíblia e uma reportagem jornalística. A opção por recortes reais veio da necessidade de ser honesto com a realidade brasileira: “São [recortes] escolhidos, mas não são ao léu, houve um trabalho de pesquisa para verificar o que, de fato, poderia contribuir para o livro”, salienta.

Seria esse o primeiro passo de Gontijo em direção a uma carreira de romancista? Com cinco livros de poesia publicados, o escritor esclarece que não. “Ir pra um romance foi, de alguma modo, uma forma de fazer um poema que não caberia em nenhum dos meus experimentos feitos até então. Acho que, no fundo, o História de Joia é uma espécie de prosa curta, um poema narrativo”, diz.

Sem dúvidas, uma experiência curta, porém densa: “Eu queria escrever uma coisa que desautomatizasse essa experiência de leitura rápida”, afirma Gontijo ao falar sobre as múltiplas inferências presentes na narrativa, e fora dela. Um quebra-cabeça sem resoluções rápidas ou instantâneas: cabe ao leitor decifrar Joia, os códigos e vidas que a cercam, assim como fazemos todos os dias na vida real.

Serviço
História de Joia
Editora Todavia
81 págs.
R$ 39,90

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