A hora e a vez da Armadilha

Depois de 15 anos fazendo teatro de ponta, companhia de Diego Fortes finalmente estreia na mostra principal do Festival de Curitiba

Mesmo quem não acredita na mensagem religiosa dos Evangelhos pode se beneficiar de alguma sabedoria dos livros. Por exemplo, a ideia de que santo de casa não faz milagre.

Na história bíblica, Jesus volta à sua cidade natal e é ignorado pelos conterrâneos. Lá, é só o filho de um carpinteiro. Mesmo hoje, dois mil anos depois, a história segue a mesma: às vezes é preciso ser reconhecido fora de casa mil vezes antes que os vizinhos prestem atenção ao que você sabe fazer.

Veja o caso da Armadilha. Há pelo menos 15 anos a companhia faz teatro de primeira. Seu Café Andaluz, de 2004, foi elogiadíssimo. Mesmo assim, o grupo nunca teve o reconhecimento devido. Nunca tinha sido chamado, por exemplo, para a mostra principal do Festival de Curitiba, o maior do país.

Agora, as coisas estão mudando. Neste ano, além de apresentar Poses para Dormir no Fringe, a Armadilha estreia Dezembro na mostra principal. Para o grupo, uma estreia pra lá de importante. Para a cidade (que nem sempre sabe se valorizar) também.

Pelas mãos de Alexandre Nero

O reconhecimento da Armadilha aumentou, por estranho que pareça, por duas peças que não tinham diretamente a ver com o grupo. Foram duas incursões de seu diretor – o ainda irritantemente jovem Diego Fortes – no universo do teatro paulistano.

A primeira chance veio pelas mãos de Alexandre Nero. Quando ainda era apenas o cantor da banda Maquinaíma, Nero estrelou uma produção da Armadilha, escrita por Alejandro Kauderer, um desconhecido autor de língua espanhola, chamada Os Leões.

O autor na verdade era um fake, forjado por Diego Fortes, o verdadeiro autor da peça – o que inclusive gerou uma história engraçada, que merece uma pequena interrupção na narrativa.

Depois de Café Andaluz, Diego estava com problema para terminar o texto de Os Leões. Nero perguntava quando eles receberiam o final da história, e a trupe dizia que Diego estava traduzindo o que restava. Mas como ele recebia os textos?, perguntou Nero. O grupo foi se enrolando em mentiras.

Agora, a história era que o novo fake, um segundo autor inventado, passava os textos para Kauderer, o primeiro autor de mentirinha, e que Diego recebia tudo em segunda mão. Alexandre Nero pediu para ver os textos e disse que não acreditava naquilo. Constrangimento.

“Vocês são muito ingênuos. Não estão vendo que o estilo é o mesmo? É o Kauderer que está escrevendo essa peça nova!”, disse, com ares de quem matou a charada.

Rumo a São Paulo

Em 2015, quando já era galã da Globo, Nero procurou Diego Fortes e pediu um novo texto. Agora, explique-se, ele já sabia que o amigo era o autor de tudo aquilo que viera antes. O musical, que estreou no ano seguinte, se chamaria O Grande Sucesso.

“Ele gostou do texto, e ficava perguntando quem iria dirigir aquilo”, conta Diego. “Eu falava [com cara de intrigado]: Pois é, se você tivesse um amigo diretor, né?” Nero acabou entendo a indireta e Diego dirigiu a peça, com frio no estômago.

No fim, tudo deu certíssimo: O Grande Sucesso fez jus ao nome, acabou levando o Shell de melhor autor e Diego ganhou um segundo convite irresistível: dirigir Renato Borghi e Matheus Nachtergaele em Molière. Não é preciso contar o resto: o menino estourou.

De volta à casa

Já de volta à Armadilha, e a Curitiba, Diego estreou Poses para Dormir no MON, no ano passado. E o grupo recebeu finalmente o convite para integrar a mostra principal do Festival com Dezembro.

A nova peça, por incrível que pareça, é de um autor de língua espanhola. Diego garante que esse existe mesmo. Alan Raffo, um dos três atores da peça, jura, brincando, que o conheceu mesmo.

A história é uma reconstrução da Guerra do Pacífico (um daqueles assuntos sul-americanos que a gente mal vê na escola), mas daqui a seis anos. E envolve apenas três atores, um cenário pequeno, e um texto um tanto estonteante.

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O enredo é até simples: duas irmãs gêmeas grávidas tentam convencer o irmão soldado de coisas diferentes. Uma, nacionalista, quer vê-lo na guerra, e vitorioso. A outra, pacifista, planeja sua fuga.

Mas, não: não há nada das tramas óbvias do tipo gêmea boazinha x gêmea malvada do estilo Mulheres de Areia ou Dois Irmãos. O buraco, aqui, é mais embaixo.

Elenco

Raffo, que trabalha com Diego desde os tempos de vacas magras, diz que a peça é na verdade uma continuidade de tudo o que o grupo já fez. “Estava tudo lá desde o começo. Agora a diferença é a produção”, opina. Ou seja: a diferença é que agora existe dinheiro.

Além dele, estão no elenco duas atrizes. Ludmila Nascarella, que interpreta a irmã pacifista, é uma veterana de Armadilha. Nem se lembra há quanto tempo está ao lado dos companheiros de grupo. Oito? Nove? Dez?

O Google informa que pelo menos em 2010 ela já estava na companhia, estreando Os Invisíveis.

Fernanda Caldas Fuchs foi incorporada recentemente por Diego ao grupo, no período paulistano, em outra história engraçada.

Palhaça por formação, ela aparecia num vídeo que o diretor achou divertido. Diego precisava de alguém coim aquele perfil para O Grande Sucesso. Se informou e decidiu que era ela mesma que ele procurava.

“Escrevi pra ela e disse: olha, vou dirigir uma peça com o Alexandre Nero em São Paulo e queria que você estivesse lá. E ela disse não. Como assim? Já imaginou se eu abro uma audição quanta gente ia querer? Mas ela disse que tinha ensaios, ia perder, não dava.”

Hoje o grupo dá risadas da recusa. E ela continua sem saber explicar porque precisou ser convencida a entrar num bonde como aquele. Fato é: hoje ela faz parte da companhia que parece a aposta mais segura de sucesso na cidade para os próximos anos.

Vídeo de Fernando Cavazzotti.

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