As digitais da digitação, os ditos do ditado

Eu já falei sobre o livro Cada um carregue sua culpa, recém-lançado pela Editora Âyiné e escrito pela jornalista Francesca Mannocchi. Falei para o próprio Plural aqui e para O Estado de Minas aqui. Tive o prazer e o desprazer de traduzi-lo. Desprazer porque ele é desagradável, é um livro que fala de crianças mortas, de mulheres abusadas, de pais separados à força de seus filhos, de fanatismo religioso capaz das maiores atrocidades em vista de um bem abstrato maior. E prazer porque apesar de todo o mal-estar, ele me tornou mais sensível, em que pese o fato de eu começar a duvidar de que esse seja um bom valor, já que pessoas sensíveis só têm sofrido diante das barbaridades do mundo. Resumindo, antes achem que eu não gostei do livro: é um livraço.

Ilustração: Benett.

E se eu volto a mencioná-lo, é porque ele continua reverberando, parece que eu ainda não me separei dele, nem o sepultei e nem ele foi apascentado no meu corpo e no meu “espírito”. Em tempos de guerra televisionada na Ucrânia, tempos de subjetividades e laços humanos que viram estatística de mortos, tempos de transformar corpos vivos apenas em corpos a serem contados, o livro de Francesca Mannocchi ressuscita sempre. Ressuscita para pensar na vida e na morte, para pensar em tradução, para pensar em como palavras estrangeiras vão ganhando forma em português e ao mesmo tempo carimbando o corpo do tradutor, operando nele transformações, choques, engulhos, valorização da vida, humanização (para o bem e para o mal), raiva, vontade de abraçar, vontade de matar. Uma mistura que a gente recebe no corpo e deixa quieto, fingindo ser possível isso tudo se aquietar. Alguma transformação subterrânea ela causa, e todo movimento subterrâneo pode eclodir, explodir, irromper, entrar em erupção. Ah, vocês entenderam.

Vou tomando esse rumo na discussão para dizer que o livro marcou também uma mudança no meu modo de traduzir. Até então, eu traduzia digitando. Tudo muito silencioso, parecia realmente que eu deixava quieto. A partir de Cada um carregue sua culpa, passei a experimentar a ferramenta “Ditar” no editor de texto. Em que pesem os mal-entendidos, acho que ganho tempo. Mas pegar o horror em uma língua e vertê-lo para o português palavra após palavra ouvindo-as na sua própria voz tem suas implicações. Imagine você sozinho em casa emprestando sua voz para essa criança, e recitando vagarosamente:

Antes da chegada do EI [Estado Islâmico] eu estava no quarto ano, o meu professor preferido era o Younes, e eu gostava também do diretor Qusai. Os meus melhores amigos eram Khaled, Muhammad, Ahmad e Yussef. Dividíamos tudo. Os brinquedos, o estudo. Daí chegou o EI. E na escola as letras do alfabeto eram usadas como exemplos para dar o nome às armas: P para projétil, H para howitzer [arma de fogo usada sobretudo para disparos dirigidos até os alvos]. Com a matemática era a mesma coisa, as adições eram a soma de armas. Pistola + pistola. Bala + bala. Em um dos textos que usavam para nos ensinar matemática estava escrito: “se uma criança explode a si mesma em meio a um grupo de vinte pessoas e morrem quinze, quantas pessoas restam vivas?”. E daí nas escolas havia as crianças dos milicianos, os seus filhos, vestidos de soldados como os pais, e armados. Tentavam convencer as outras crianças a jurar fidelidade al Khalifa.

Como não costumo ler o livro antes de traduzi-lo, as palavras vão sendo ditas a conta-gotas, cada gota uma surpresa que se revela e cria suspense para a seguinte. Uma cortina de teatro que vai se descerrando aos pouquinhos.

O livro, é bom que se diga, não tem intenção de tomar partido, pelo menos não o partido de um dos lados envolvidos no massacre. O Ocidente não é o herói que luta contra os vilões do Estado Islâmico. Leia em voz alta e compassada:

Quando é que paramos de nos envergonhar? Foi depois de Abu Ghraib? Depois das imagens dos soldados americanos fotografados enquanto riam posando ao lado de uma pirâmide de prisioneiros seminus e encapuzados, ajoelhados uns sobre os outros? Ou diante da imagem de um cão faminto lançado contra um detento vestido de macacão laranja, sentado no chão com a cabeça raspada e as mãos amarradas atrás das costas? Ou esgotamos a cota de vergonha na frente de um outro prisioneiro, em pé sobre uma caixa, capuz preto na cabeça com os braços esticados paralelos ao solo como um cristo na cruz, mas sem cruz, com cabos elétricos e à sua direita um soldado, americano, que observa distraidamente fotos recém-tiradas? Ou esgotamos o respeito e o pudor depois da imagem de Lynndie England, soldado de vinte e um anos do 372º batalhão de polícia militar estadunidense em um corredor do Braço A1 de Abu Ghraib, que arrasta um iraquiano completamente nu em uma coleira feita com um cinto amarrado no pescoço, como um cão, pior do que um cão, observando-o com severa satisfação? Após o escândalo, Lynndie foi condenada a seis meses de prisão; diz-se abertamente “jamais arrependida” por aquilo que tinha feito, porque “tudo isso não era nada em relação àquilo que os iraquianos haviam feito a eles”.

Francesca Mannocchi. Foto: divulgação.

Francesca Mannocchi narra, entremeando vários depoimentos, a guerra em Mossul, nos idos de 2016. Um festival de fanatismo religioso e fanatismo econômico, com interesses comerciais disfarçados de ajuda humanitária. Saí do livro (ele não saiu de mim, pelo jeito) com a impressão de que adultos não passam de crianças crescidas, sem a desculpa de que ainda não amadureceram. Não amadureceram, mas endureceram, cristalizaram suas posições numa fase pré-lógica. Sai a beleza da infância, entra a tristeza da infantilidade. Talvez seja leviano, mas para mim o fanatismo religioso não passa de uma crença duradoura e a ferro e fogo em Papai Noel, Fada do Dente, Coelho da Páscoa, enquanto o fanatismo econômico se assemelha à criança, já cheia de brinquedos, cobiçando o brinquedo da outra e querendo a todo o custo pegá-lo. Como são adultos, os puxões de cabelo, mordidas e o puxa-daqui-puxa-dali são transformados em mísseis, tanques, torturas embaladas em discurso de boas intenções, porque afinal já se tem noção de que é feio fazer isso, então o jeito é disfarçar, algo que crianças de três anos não fazem.

Voltando à tradução ditada em vez de digitada, devo acrescentar um dado curioso: às vezes sozinho, às vezes acompanhado pelos ouvidos assustados da minha mulher que passava pelo escritório enquanto eu traduzia em voz alta, a ferramenta “Ditar” não se envergonhava em escrever palavras como “decapitação”, “explosão”, “execução”, “tiros”, “abuso de crianças”. No entanto, quando precisei descrever o momento em que uma família faminta havia conseguido um saco de feijão, o pudor cibernético escreveu **** em vez de saco. Fiquei intrigado. Repeti, saco, saco, saco, e ele me devolvia ****, ****, ****. Descobri que se eu escrever palavras relacionas a sexo, ele censura. Palavras relacionadas a morticínio, crueldades humanas, torturas várias, ele vai de boa. Resumindo: ditei uma série de atrocidades, mas o editor de texto não escreve **** de arroz porque neste **** de arroz existe a palavra ****, que pode estar associada, dentro do seu pundonor programado, a uma determinada parte do corpo masculino. Então eu posso falar de gente decapitada, degolada, abusadora, fanática e cruel que o ditado irá escrever todas as palavras associadas, mas não posso falar de uma ***** de um **** de arroz, muito menos do **** de um homem.

Que pudor do *******, pensei. Isso é muito ****.

Percebi também (e peço para que você faça o teste aí na sua casa ou trabalho): a ferramenta “Ditar” não escreve a palavra “paixão”. Tento de todas as formas, mudo a entonação, mudo o sotaque. Ele só me dá: “abaixam”, “país chão”, “paix Ham”, “baixam”, “pai chão”. De paixão, nada.

(Uso o “Ditar” do Word, da Microsoft. Testei a ferramenta da Apple e do Google, mas me adaptei melhor a essa, apesar dos pesares).

A inteligência artificial, criatura construída por nós, talvez reflita a imagem de seu criador. Parece que o bom (bom mesmo, né?) e velho sexo continua causando mais espanto do que explosões e bombardeios. E sem nenhum espaço para a paixão erótica, apenas para a paixão derivada do pathos, da patologia, da doença, do sofrimento.

Entre as digitais da digitação e o dito do ditado, tantos mundos. É cuidar com o que sai das nossas mãos e da nossa boca. Cuidar não como quem se reprime, mas como quem cuida do outro, como quem cuida daquilo que vive.

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