catuaí vermelho

cheguei pra Denise no trampo esses dias

– Mãinha

– oi

– você aprendeu a cozinhar com sua mãe?

– Mãinha não cozinhava não Amô. foi com minha vó

– tendeu. o salpicão tava daora demais

– brigada

– brigado eu pô

– tem gente que não acredita

– hum

– mas minha vó já tinha morrido quando eu nasci Amô

– e aí parece que alguém diz coloca um pouco disso, coloca um pouco daquilo, e eu escuto

na aba crônicas do jornal Plural você pode encontrar de um tudo: psicanálise, política, dicas de culinária pra quem chega em baia depois de ter batido o ponto, internações, hospitais, medos. só trampando de cronista somos em sete homens e três mulheres e me pergunto quantas mãos fazem um jornal, quantos números o viabilizam, quantos paus são responsáveis por foder o mundo, quantas cores têm no arco-íris. na mitologia iorubá, Oxumaré usa uma espada de bronze pra espantar as chuvas. é quando a lâmina passa no céu que saem as cores.

Curita tá de luto. Mateus Noga foi mais um jovem brasileiro a ser morto pelas costas, a tiros, por disparos da polícia. o piazão tinha acabado de tirar carteira de motorista e tava no Largo comemorando. bagulho cruel. pra quem nunca veio pra cá, o Largo da Ordem fica no centro histórico: ruas de paralelepípedos, construções tombadas, um cavalo de bronze que desde 1995 cospe água no meio de uma fonte. muita gente diz que Curita teve um passado escravocrata mais ameno (?), que não havia tantas plantações, que já éramos exemplo de civilidade. nos arquivos públicos daqui, consta que no dia 28 de julho de 1861, Sebastião Gonçalves da Silva (chefe de polícia da província do Paraná), escreve a Antônio Barbosa Gomes Nogueira (presidente da província do Paraná), informando que “foi presa, por ter fugido, a escrava Rosa, pertencente a Pedro Ezequiel de Araújo”. o tempo passa. em vez de carta, a gente recebe newsletter e manda direct. vocês viram o vídeo do policial aqui do sul que grita EU NÃO SUPORTO NEGRO? pouco muda.

geral é diariamente metralhada por relatos de guerra e, nas linhas de frente, tomba antes quem carrega a bandeira. imagine a loucura: ir de peito aberto em direção do inimigo, levando cabo de vassoura com pano amarrado. não que com uma arma seja mais são. a gente só quer viver. tava trocando ideia com outra parceira do trampo, sobre as fitas que ela vai deixar pro filho

– e fico crisando se eu boto trinta anos da minha vida pra comprar uma casa tá ligado? deixar um patrimônio pra ele e tals

– aham

– ou se vivo a vida pra mim também, e tento deixar ele…

– ?

– é de vestir mas não é uniforme

– farda

– isso, tento deixar ele fardado pra vida

– que bosta de mundo esse às vezes né piá?

– sim. mas boto fé no teu papo guria

– e acha o quê?

– que na nossa cabeça são várias fitas, e que uma resposta não dá conta de tudo

passei o final de semana no MON. a padaria onde a gente trampa assumiu o café que tem lá dentro. o museu Oscar Niemeyer foi inaugurado em 2002 mas o projeto é de 1967, ano em que baixaram o A.I. 4 aqui no Brasil e que executaram o Che Guevara na Bolívia. fiz um cappuccino prum cara que tava com a peita do Che: ele me disse que curtiu a parte do olho e que tem uma máquina de espresso em casa. o grão que a gente usa lá no trampo é plantado na Serra do Caparaó, sul do Espírito Santo. a variedade é catuaí vermelho, e catuaí vem do tupi-guarani. significa muito bom.

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