A crônica não mata – Parte 13

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À minha frente, na fila da vacina, um casal de jovens se abraça, protegendo-se do vento gelado. Passam duas horas assim, à espera da imunização completa, abrigados um no outro, embora distraídos, imersos no fosso de seus celulares. De repente, ao alongar-se, o moço se flagra debaixo de uma árvore nua. Nenhuma folha, nenhuma flor, nenhum significado a reveste. Terá no máximo três metros de altura, e da ponta de seus galhos secos pendem estranhos apêndices, de cores fortes, mas esmaecidas. O moço cutuca a namorada: O que será isso? Que árvore é essa? A moça se admira, não sabe, nunca viu frutas como aquelas. Ambos fotografam a cena, postam as imagens em suas redes. De minha parte, apenas sorrio sob a máscara. O mundo jamais deixará de parir seus Adões e suas Evas. Estes dois, por exemplo. Talvez nunca tenham passado tanto tempo ao ar livre quanto nesta manhã, no paraíso da Ouvidor Pardinho, onde sentiram frio e dor nas pernas, entediaram-se consigo mesmos, olharam para cima e então se maravilharam, pela última vez na vida, com meia dúzia de cascas de mamão espetadas numa arvorezinha ordinária.

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Duas décadas atrás o jornal em que eu trabalhava enviou uma equipe a não lembro qual município da região metropolitana. Sua tarefa era averiguar a origem de uma história que chegara à redação por intermédio de um leitor pouco fidedigno. O homem garantia ter fisgado, com linha e anzol, numa manhã comum de pescaria, o então famigerado Chupa-cabras. A missão foi e voltou em duas horas e nos trouxe fotos reveladoras da criatura que o pescador ainda mantinha sob sua custódia: tratava-se de um girino graúdo, a meio caminho da maturidade. Um biólogo chegou a ser consultado, a reportagem foi publicada, os leitores a repercutiram moderadamente, houve certa chacota, alguma inconsequência. Se o sapo sobreviveu à própria lenda, eu nunca fiquei sabendo. Isso foi há duas décadas. Pouco antes da queda das Torres Gêmeas. Outra época, outros temores.

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A fila anda. Agora, quem está debaixo da árvore seca sou eu. Olho para cima e também me alongo. É bom saber que alguém se preocupa com a alimentação dos passarinhos da Ouvidor. Agradeço a quem quer que tenha pendurado por aqui estas frutas, e as examino em detalhes, como alguém que se demora ao visitar uma instalação, um pedante connaisseur de bagatelas. Logo descubro, pousada numa casca de mamão, uma mosca azul-esverdeada. Ela refulge ao sol, esperando o dia esquentar, e admito que a considero bonita e bem-vinda. O bicho me faz pensar na mosca azul de Machado de Assis, aquela de “asas de ouro e granada”. Recorro à internet, em busca do original machadiano, e, enquanto releio aqueles versos no celular, pergunto ao inseto, por vias telepáticas: “Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, dize, quem foi que to ensinou?”. Ela não responde, é óbvio, sabe que não é nenhuma personagem de poema. Decola num rompante, retira-se ruidosamente de minha presença, atitude naturalíssima para uma mosca, mas que acabo por reputar deveras desrespeitosa. Afinal, não é assim que se deve tratar o poderoso rei da Caxemira.  

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A crônica não mata, mas, sim, se deixa fascinar pela morte, o que no fundo ameniza o triste trabalho que lhe acarreta inventariá-la. Qual o problema? Muitas vezes me entretenho e até me enterneço com o pateticismo das mortes antigas. Vejam o caso de Antíoco Epifânio. Imperador da Assíria, também conhecido como O Louco, morreu de tanto espirrar, em 162 a.C., logo após haver inalado uma mosca. E o rei babilônico Nimrod, tão temido há quatro milênios? Teve seu cérebro devorado por outra, que também o teria penetrado pelo nariz, em pleno campo de batalha. Dizem que, ao dissecarem seu cadáver, desalojaram de seu crânio uma mosca tão vistosa quanto um passarinho. Segundo explicou o entomologista Messias Carrera, num dos muitos textos que publicou na imprensa paulista, há mais de meio século, Antíoco e Nimrod teriam sido vítimas de uma “míase nasofaringeana, com desfecho fatal”. E o mesmo teria acontecido com o imperador romano Tito. Consta que durante o Cerco de Jerusalém, palco de inúmeras de suas atrocidades, o grande homem, por descuido, aspirou uma pequena mosca. Morreu dois anos mais tarde, em 81 d.C., desvairado, incapaz de suportar o zumbido que sem parar vazava de sua vitoriosa cabeça de general, responsável por mais de cem mil assassinatos.

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Uma leitura me guia à outra. Os insetos de Messias me conduzem ao Velho Testamento. Isaías, capítulo 7, versículos 18 e 19. Profético, o trecho se refere a um futuro tão terrível quanto inevitável, ao dia do nascimento do menino-Deus Emanuel, assim referido na edição pastoral que, desde a adolescência, me acompanha: “Nesse dia Javé assobiará para as moscas da foz do rio do Egito e para as abelhas do país da Assíria. Elas virão todas e pousarão nas grotas dos morros e nas fendas das rochas, em todas as moitas de espinhos e em todos os bebedouros”.

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E neste estressante setembro de 2021, eu, que não creio e nem quero crer, que nunca pedi nada e tudo ganhei, enfim suplico: “Senhor, assobiai de uma vez!”.

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Faz pouco mais de um mês. Um casal de urubus chegou ao meu bairro e se acomodou no prédio diante do meu. Passaram semanas se divertindo, cortejando um ao outro, evoluindo entre os edifícios como os exímios bailarinos que são, técnicos, porém bêbados de alegria. Voavam rente às janelas do meu apartamento, desencadeando dolorosas crises de aflição em minhas duas gatinhas pretas. Agora já se acalmaram, tanto os pássaros quanto os felinos. Tudo já se consumou: o desejo, o amor, a aventura. O ninho está pronto e os ovos, postos. Talvez já tenham até chocado. Os urubus vivem empoleirados no terraço do prédio em frente, em postura macambúzia, como se premidos a economizar toda a energia de que ainda dispõem. Pode ser impressão minha, mas a presença deles ali parece atrapalhar o tráfego das garças brancas pela Amintas de Barros. Elas vão e vêm do seu ninhal no Passeio Público, como sempre fizeram nessa época do ano. Mas é como se agora os urubus as constrangessem, ou compungissem, ou comovessem, sei lá. Sei é que as garças os evitam. O que nem é difícil. Basta que voem um pouquinho mais alto.

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Acendo as luzes da biblioteca. Quando me debruço sobre um livro aberto, é minha a sombra que lanço sobre ele.

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