Aos escafandristas

Este é o planetinha azul, Joana. Azul por fora, fogo por dentro.

Sim, os continentes ainda flutuam e todos os anos nos aproximamos um pouco mais da África. Será que haverão viventes para ver o Nordeste na fronteira com Cabo Verde? Os cientistas dizem que a aproximação média é de quatro centímetros ao ano.

Acho que os vincos do tempo são sempre imperceptíveis. Ontem mesmo acordei com uma marca significativa entre as duas sobrancelhas. A idade se cravou na pele, mas só fui perceber assim, na banalidade da noite para o dia.

E o que dizer dos nossos amigos?

O Pablo costumava andar de havaianas nas noites mais frias e agora comprou um Uno 97.

Marta realizou o impossível de se enamorar despretensiosa e agora vive com as tetas jorrando. Veio tentar o concurso do Banco do Brasil, quem diria. Resolveu ter um filho com a vida por fazer, morando na casa vaga da sogra, sem nenhum diploma no bolso ou pagamento do INSS. Nesses anos todos, nunca vi mulher tão feliz dentro do que a vida pode ser, no compasso em que vai sendo.

Tanta leveza me coloca em questão analítica. E eu e eu e eu, o que vou fazendo de mim enquanto os outros se enamoram e fazem planos, parcelam seus carros e até conseguem arriscar um financiamento?

Estou me medindo pelas minhas posses? Sim, estou. Até um Uno 97 pode ser uma história que vai se esfacelando pelo caminho. Um rastro inútil, eu sei. O suor das prestações baratinhas dos nossos trinta anos e um longo caminho pela frente.

Deixar rastros, Joana. Você sabe que uma relação acaba quando já não tem rastro material. Não faz muito tempo deixei uma camisola de seda para ser lavada junto com as cuecas do Antônio, uma peça que eu tenho há dez anos e teria por muito mais. Gosto da forma como o tecido toca o corpo e fiz dela um indício nem tão inocente assim.

Voltei para pegar a camisola e a nossa breve história se desfez no desaparecimento de um rastro, sem deixar vestígios de imagens do que poderia ser.

Não foi.

Tenho pena de quem faz tatuagens românticas. Não há memória que não se desfaça a não ser pelos rastros.

Que as ilhas também afundem, que as placas tectônicas estejam ativas no Recôncavo Baiano, são indícios de que as coisas estão em plena transformação quando ninguém percebe. Nada está acontecendo até que nos assombre um terremoto de mínimas magnitudes, que os continentes se encontrem, que dois se separem e se reencontrem num longo espaço de tempo.

Acho que a Terra por dentro faz barulho. Imagina o barulho do núcleo, aquele magma girando, as rochas da crosta fazendo fricção. São ruídos contínuos, quase silenciosos. Não foi o Rosa que disse que tudo é a ponta de um mistério, que um milagre acontece quando não estamos vendo?

Espero que o movimento do mundo nos traga muitos milagres, embora hoje não me dê conta de nenhum.

Para onde nossas pontas se movem, em que arquipélago elas se chocam, eu não sei. Que a água permaneça contida dentro de um globo azul, que este planeta não vaze para os lados, já é assunto para muita ciência e um tanto de espanto.

Um observatório no Chile capturou imagens de uma galáxia devoradora. As estrelas são tragadas diante de sua aproximação, perdem a posição original e são violentamente jogadas de novo ao espaço.

Quanto a nós Joana, também estamos sujeitas às intempéries. De que nos valem esses contornos? Deixe rastros, escreva nas paredes, no saco de pão, faça oferendas aos seus amigos e amores.

Se um dia o chão afundar e a casa cair, se numa noite dessas um redemoinho de areia nos soprar pelos ares, vai haver sempre um resto de nós esparramado no chão.

Vestígios arqueológicos a quem um dia alguém dará memória, história, quem sabe, destino.

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