Novos caminhos

Se temos a nossa casa ou a nossa vida destruída por alguma fatalidade, o ideal é que aprendamos com o erro e tracemos novas estratégias para não os cometer novamente. Pelo menos é isso que os livros de autoajuda dizem

É complicado falar de tristeza porque ela nos limita, passando aquela sensação de que “nada tem saída”. É impossível não sentirmos tristeza após um acidente vascular cerebral, mas para sairmos dela é preciso nos inspirarmos no processo de neuroplasticidade e construirmos novos caminhos.

Sem dúvida, os primeiros meses após um AVC são os mais difíceis. Não são “apenas” as limitações físicas e sociais que chegam de repente, é uma dor profunda na alma e uma forte sensação de que a vida acabou. Dá muita raiva, porque sofrer um derrame é uma baita injustiça perante os nossos sonhos e alegrias. Não se engane, ninguém se sente grato logo após sobreviver a um AVC, isso só vem depois, com o tempo, à medida em que vamos nos recuperando e aceitando. Por isso, afirmações do tipo “você deveria agradecer por estar vivo” para quem mal saiu do coma, nunca são bem-vindas. Na verdade, quem a diz corre um sério risco de levar uma bordoada na cara.

Não é à toa que muitos sobreviventes são diagnosticados com depressão pós-traumática. Eu fui um deles: na minha cabeça só havia espaço para pensamentos catastróficos como “O que vai ser de mim agora?” – célebre frase que me repetia a todo instante. Para sair deles, foram precisos muita terapia e estabilizadores de humor, já inseridos em meu “kit” medicamentoso de nove remédios diários. Bem mais tarde, descobri que esses estabilizadores também ajudavam no processo de neuroplasticidade do sistema nervoso central. Ou seja, o mesmo processo responsável por eu voltar a andar e a falar português, também me ajudou a voltar a ver sentido na vida.

Basicamente, vejo a neuroplasticidade como a busca de novos caminhos para os neurônios trabalharem. Se temos a nossa casa ou a nossa vida destruída por alguma fatalidade, o ideal é que aprendamos com o erro e tracemos novas estratégias para não os cometer novamente. Pelo menos é isso que os livros de autoajuda dizem. Somente a partir dessas pequenas resoluções é que conseguiremos aquela força necessária para nos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.

Claro que falar é muito mais fácil do que vivenciar a terrível dor na alma que cada um de nós temos lá no fundo do peito. Todos temos, não é mesmo? E o pior é que a gente se vicia nela e nos pensamentos catastróficos. Quando eu entrei nos grupos de apoio, só me conectava com os comentários queixosos, só eles representavam o meu luto daquele instante. Estava vivendo a dor do luto pelo meu corpo e pela minha vida. Na época, para mim, não havia saída, não havia outros caminhos. Hoje entendo que essa limitação também era neurológica. Com a extensão da minha lesão, meus neurônios não conseguiam se conectar e formar novas ligações em suas “teias de sinapses”. Minha personalidade, antes tão colorida e altiva, estava perdida no mundo preto e branco da dor. E para encontrá-la de volta eu precisava de toda ajuda possível.

Digo isso porque a neuroplasticidade não se fortalece apenas por meio de estímulos medicamentosos e físicos, ela é gigantesca e acontece de várias formas, são diversos caminhos. Por exemplo: quando meditamos ou oramos, nosso cérebro aprende novas formas de se conectar, por isso nos sentimentos aliviados na hora e somos capazes de ter novas ideias após nos conciliarmos conosco ou com Deus. Além de mover montanhas, a fé reestrutura o cérebro, e por isso, ela é um caminho tão bonito para recuperar-se de qualquer baque.

Outro método muito prazeroso é a arte, que não é algo apenas para artistas, mas para todo mundo. Aprender um instrumento musical, desenhar, esculpir, fotografar e escrever são caminhos artísticos que, além de terapêuticos, estimulam a neuroplasticidade. A arte nos ajuda a limpar nossas dores, a colocar para fora os nossos medos e a vê-los de outra maneira. Todo processo artístico nos torna mais humanos, tanto em nossa cólera como na nossa ressignificação.

Durante todo esse processo de se reencontrar, a terapia cognitiva também é primordial, já que apenas um profissional capacitado é capaz de lidar com tamanha tristeza, que nos aflige ao ponto de transbordar para todos os setores da nossa vida, chegando aos ouvidos de amigos e familiares e até mesmo aos profissionais da reabilitação que encontramos pela frente. Todos ouvem nossas lamúrias, e tudo isso faz parte do processo. É preciso tirar toda essa energia negativa de dentro. Hoje eu entendo.

O processo de recuperação emocional não é somente interno, o meio social também pode contribuir ou dificultar o nosso movimento de “abertura de caminhos”. Por este motivo a acessibilidade é tão importante, não apenas a acessibilidade física, mas também a social. Precisamos tanto de novos lugares como de novas pessoas em nossa vida. Desde o meu acidente, ouvi de muitos sobreviventes que desde os seus derrames eles não saem mais de casa. E como é possível ser feliz sem ar fresco e vida social? Acho que, com o isolamento provocado pela pandemia, toda a humanidade teve que passar pelo que alguns sobreviventes de AVC e PCDs passam. E o resultado não é nada satisfatório: muitas pessoas ficaram mais tristes e com problemas de saúde mental. O mesmo acontece com qualquer sobrevivente que se isola de tudo e de todos.

Ao não se considerar mais aceito numa sociedade, seja pela dificuldade de locomoção ou pelo preconceito das pessoas, o sobrevivente de AVC se vê condenado a uma vida de solidão e martírio. E não são todos que resistem a essa nova realidade sem rumo, muitos desistem de continuar vivendo, e exatamente por isso a campanha do setembro amarelo também se aplica a nós.

Acredito que todo sobrevivente é um diamante bruto que resiste em ser lapidado, porque lapidar-se dói, e já fomos muito machucados, já fomos muito expostos. Lapidar-se significa aceitar que nossa vida mudou, mas nem por isso determinar que ela seja construída apenas de infelicidade. É preciso encontrar novos caminhos para conquistar os sonhos, e lutar bravamente por eles. 

Assim como é difícil construir castelos em uma terra devastada por uma guerra, é difícil reencontrar a alegria de viver após sofrer uma lesão cerebral. É difícil morrer e continuar vivendo, mas não é impossível. Como cada pessoa é única, os caminhos vão sendo traçados de modos diferentes, e nele todos os passos são válidos: dos pequenos aos grandes. E à medida que novos caminhos são firmados na vida, novas sinapses neurais surgem, porque melhoramos muito nosso desempenho fisiológico quando o psicológico é reorganizado, já que os dois estão profundamente interligados.

Eu, que me apego cada vez mais às forças das palavras, tratei de mudar até o meu vocabulário em minha nova vida (virei meio hippye). Quem convive comigo sabe que agora falo muito a frase “Eu acredito”. É uma afirmação sincera, já que esse caminho da crença não me era tão visível antes do meu acidente, ele foi trilhado justamente após o AVC, e me salva todos os dias. Hoje, eu acredito que se o meu cérebro é mutável ao ponto de mesmo desmiolado ser capaz de pensar, a mente também é. A tristeza tem cura.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima