O campo do processo

Sobre caminhos para arte e para a vida

Divido a minha vida entre a arte e o consultório psicanalítico. Nessa ordem, já que a arte veio antes do ofício e, de certa forma, foi através das indagações artísticas e seus desdobramentos que a psicanálise entrou nem minha vida. Entrar não é uma boa palavra, está mais para “repertoriar”, já que foi assim que as possibilidades do estudo das teorias psicanalíticas jogaram  luz nova  sobre as minhas questões enquanto artista e curador.

Considero ambos os campos como extensão do mesmo interesse pessoal, por isso não deixo de ser analista quando estou no papel de artista, assim como não deixo de ser artista quando escuto pacientes no consultório narrando sobre processos de vida.

Mas o que uma manifestação artística como pintar teria a ver com viver ou com terapia? Nada, se você considera pintura um jogo entre pincéis e tintas cujo resultado serve apenas para combinar com seu sofá. Tudo, se você considera que a pintura, como qualquer empreendimento da criatividade, é uma experiência com você mesmo. Somos um corpo inserido no tempo cronológico, pulsões que atam e desatam, desejos verdadeiros e também herdados, tensões e relaxamentos disto tudo com o mundo, ora tentando proteger nossa integridade psíquica, ora tentando expandir o campo conhecido. Não é fácil, mas é esse o experimento – acrescente a isso tudo os boletos que a vida manda.

Ainda assim o fazer criativo tem um poder de metáfora valioso para estipular uma crítica às certezas. A arte, tal como a vida, possui paralelamente caráter científico e  anticientífico no ponto que manifestam práticas teorizáveis e não teorias aplicáveis. Na arte e na vida a experiência vem primeiro, depois é que pensamos a respeito – curiosamente é desse mesmo modo que opera a psicanálise.

Há discussão sobre a psicanálise ser ou não ser uma ciência, mas ninguém pergunta sobre a arte ter tonalidades científicas. Tenho claro sobre certo terreno fértil onde as experiências acontecem no espaço apertado entre o passado e o futuro. Esse lugar privilegiado no agora onde nada tem garantias: o campo do processo. É da ciência que precisamos guardar algo importante que é chave para movimento intelectual: apresentar sistematicamente hipóteses a um objeto de interesse — este ponto arte e ciência guardam em comum.

Sustentar esse sistema de hipótese é caro, pois envolve boa dose de interesse pessoal – para permanecer longamente interessado – e de persistência para enfrentar o tédio e o fracasso momentâneo. Ainda assim, é de maneira processual que algo novo pode acontecer. Para se ter pinturas é necessário antes causar um pintor no sistema. Primeiro vem o processo, depois o produto. A pintura é a investigação materializada e o resultado das hipóteses causadas pelo pintor que apaixonadamente flui (aguenta) no processo de pintar. A arte parece que já sabia disso desde sempre, mas a psicanálise só pôde tecer observações há pouco tempo.

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