O Brasil é imperdoável

É cedo para sabermos se Bolsonaro sairá ou não vitorioso do golpe que prepara. Mas já passou da hora de pararmos de confiar nas instituições como se elas bastassem para nos salvar da barbárie. E de pararmos de tratá-lo como uma exceção em nossa história recente

Depois de ontem, se já era frágil e questionável, se tornou insustentável o argumento de que Bolsonaro foi eleito porque era uma “alternativa ao PT”.

Em 2018, à esquerda, ao centro e à direita, havia alternativas ao PT, e para todos os gostos e tendências. Apenas para ficarmos nos que eram considerados eleitoralmente viáveis, tínhamos Ciro e Marina, de um lado; Alckmin e Amoêdo, de outro. E de nenhum deles se pode dizer que representavam tendências extremas ou sectárias, tampouco que colocavam em risco a democracia.    

Ainda assim, o atual presidente foi vitorioso no primeiro turno com 49 milhões de votos, aos quais se somaram mais 11 milhões no segundo turno. Uma vitória folgada e incontestável, até que, há alguns meses, o próprio Bolsonaro decidiu colocá-la em dúvida, acusando as eleições de terem sido fraudadas.

E a nenhum, nenhum, de seus milhões de eleitores e, principalmente, a nenhum dos que foram às ruas ontem manifestar seu apoio a um genocida, responsável direto pela política de morte que condenou quase 600 mil brasileiros e brasileiras ao desaparecimento, é dado o benefício da dúvida.

Em quase três décadas no Parlamento, Bolsonaro foi um deputado medíocre, um vagabundo sem brilho que comia pelas bordas dos esquemas de corrupção, usando dinheiro público para “comer gente”, e cujo único feito foi instaurar, em seu gabinete, as “rachadinhas”, que deixou como legado aos filhos.

No Rio de Janeiro, sua ligação e do resto da família com o crime organizado – é preciso chamar as coisas pelo nome: milícia é crime organizado – já era amplamente conhecida, mesmo antes das primeiras matérias investigativas trazerem para o grande público seus vínculos com as milícias.

Tampouco eram desconhecidos seus elogios à ditadura, seu pouco apreço à democracia, seus rompantes autoritários, seus flertes com o fascismo e com movimentos neonazistas. Em entrevista de 1999, disse que, se fosse presidente, fechava o Congresso, e lamentou que a ditadura não tenha matado “uns 30 mil”, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Em 2009, recepcionou familiares de desaparecidos políticos fixando, na porta de seu gabinete, um cartaz onde se lia que “Quem procura osso é cachorro”.

Durante a campanha presidencial, foi elogiado, entre outros, por David Duke, líder da Klu Klux Klan. Sua vitória no primeiro turno, ele a comemorou avisando que era preciso acabar com “todo o ativismo”, e que mandaria a “petralhada” para a “ponta da praia”, local usado para executar e desovar militantes de oposição durante a ditadura.

Sua misoginia e homofobia, seu racismo, seu desprezo pelos indígenas, sua atuação, como parlamentar, contra os trabalhadores, estão aí, devidamente documentadas em vídeos, entrevistas e nas atas da Câmara dos Deputados.

A ascensão meteórica que o levaria do parlamento ao Palácio do Planalto foi consolidada na vergonhosa sessão de 17 de abril de 2016, quando dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff a um militar que, nos porões da ditadura, estuprou, torturou e matou, o coronel Brilhante Ustra.

Bolsonaro não é uma exceção

Apesar desse histórico, Bolsonaro foi eleito.

E é preciso que se diga: em nenhum momento de 2018, ele teve sua vitória ameaçada. Bolsonaro entrou na campanha certo da vitória. Não porque tivesse um programa capaz de o redimir, em algum grau, dessa trajetória tanto medíocre como criminosa.

Pelo contrário. Seu plano de governo, um amontoado de lugares-comuns extraídos de rodas de conversas e grupos reacionários de WhatsApp, mal e mal arrumados em slides de Power Point por algum estagiário de campanha, era capaz de fazer Cabo Daciolo parecer um candidato sério.

Sua atuação como presidente, nesse sentido, não decepcionou seus eleitores mais fiéis. E o modo como se empenhou, pessoalmente, em boicotar cada medida de prevenção à pandemia, e os 580 mil cadáveres que sua irresponsabilidade criminosa produziu, são, inegavelmente, o testemunho mais eloquente, e trágico, de seu completo desprezo não apenas pela democracia ou as instituições, mas pela vida.

Mas que esse período tenha servido para depurar o apoio a um genocida, não muda, não deve mudar, o que passou.

Sim, é verdade que, hoje, Bolsonaro é uma liderança isolada, que vê seus índices de aprovação derreterem e que mantém, como aliados, o que temos de pior: políticos corruptos; militares saudosos dos tempos em que assassinavam e torturavam nos porões; policiais militares sedentos de sangue; blogueiros e empresas de um país paralelo que enriquecem espalhando mentiras; pastores inescrupulosos e vendilhões da fé; médicos charlatões; latifundiários que vivem da destruição do ambiente e do extermínio das culturas indígenas; empresários que não se importam em sacrificar alguns milhares pelo bem de seus lucros;  patriotas e cidadãos que, autoproclamados “de bem”,  veem no bolsonarismo o canal por onde extravasar seus ressentimentos, sua pequenez, seus preconceitos, sua vontade de subjugar toda diferença e fazer do mundo um lugar insuportável.

Em uma palavra, a escória.

Mas nada disso é, ou deveria ser, novo. Digo de outro modo: tudo isso já estava devidamente claro em 2018 e mesmo antes. Mas ainda assim Bolsonaro foi, não apenas considerado, no segundo turno, a alternativa em uma “escolha difícil” contra Fernando Haddad, o candidato petista.

Ele foi afagado por liberais e setores do mercado, tolerado como uma espécie de extravagância “controversa e polêmica” por parte da nossa mídia tradicional, e reconhecido como liderança por milhões de eleitores dispostos, ontem como hoje, a embalar seus sonhos autoritários. Se poucas coisas são tão transparentes, desde que chegou à presidência, quanto seu projeto golpista, as manifestações por uma “nova independência” não foram outra coisa que não o ensaio, a preparação do que está por vir.

É cedo para sabermos se Bolsonaro sairá ou não vitorioso do golpe que acalenta e prepara, com rigor e método. Mas já passou da hora de pararmos de confiar nas instituições como se elas bastassem para nos livrar da barbárie. Uma barbárie, aliás, que ajudaram a produzir, consentindo, covardemente, com os excessos do governo, enquanto tentavam nos convencer que seguiam “funcionando normalmente”.

E não menos importante. É hora de cessarmos não apenas de subestimarmos Bolsonaro, mas de tratá-lo como uma exceção, como se os mais de 70% de brasileiros que apoiam a democracia, segundo editorial de ontem da Folha de São Paulo, fosse um indicativo de que o bolsonarismo é um acontecimento sinistro, mas pontual, em nossa história.

Porque ambos, Bolsonaro e o bolsonarismo, são o resultado de um desejo, o desejo das massas pelo fascismo, pelo espetáculo e pela violência do fascismo, como alertou Reich ao se referir aos alemães que testemunharam a ascensão do nazismo: eles não foram enganados porque, em certo momento e sob determinadas circunstâncias, o nazismo foi exatamente o que elas, as massas alemãs, desejaram.

Algo semelhante ocorreu no Brasil em 2018, que nos ajuda a entender a encenação grotesca das manifestações de ontem: Bolsonaro não foi eleito apesar de seus vícios, de seus vínculos escusos com as milícias, de seus preconceitos e de seu autoritarismo. Ele foi eleito justamente por eles. E isso será difícil de superar e perdoar.

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