A luta pela independência

Nenhum processo de independência é conquistado sem luta, e no meu caso, foram dois caminhos utilizados em minha recuperação

Sempre gostei de História do Brasil e de todo tipo de independência. Todavia, em um dia frio de maio de 2019, perdi minha autonomia, e para recuperá-la, me inspirei no que aconteceu lá no início do século XIX. Esta é a história da minha luta pela independência.

Quando era pré-adolescente adorava uma brincadeira de preencher um caderno de perguntas e respostas que funcionava assim: em cada página havia uma pergunta que a gente precisava responder, sempre na mesma linha designada ao nosso nome, que estava lá na primeira folha. Depois de algum tempo, o caderno se tornava uma espécie de quiz gigante, com muitas respostas (algumas variadas, outras iguais) de toda a turma de amigos, nos dando a oportunidade de nos conhecermos melhor e de compararmos as nossas respostas com as do crush, para ver se o investimento valia a pena. Pois é. No fim, a brincadeira poderia se tornar uma espécie de Tinder analógico dos anos noventa, em que a melhor estratégia era tentar respondê-lo por último e ter uma boa memória visual.

Uma pergunta bem recorrente nessa brincadeira era “Qual é o seu maior sonho?”, que geralmente era respondida com “Ficar rico!” ou “Ser feliz!”. Nada muito original ou dramático para quem ainda não pagava boleto. Em um desses dias, estava pensando que se recebesse um caderno desses no meu primeiro ano pós-acidente, responderia essa questão de uma forma bem diferente para muitos, mas muito comum para todo sobrevivente em reabilitação. Eu responderia: “Voltar a ser independente.”

Independência é uma palavra bonita e forte que significa “dissociação em relação ao outro”, mas que também remete à conquista de liberdade e autonomia. Quando nascemos, somos seres totalmente dependentes de nossa mãe ou de nosso cuidador. Sem auxílio, não conseguimos nos alimentar, nos limpar e nos aquecer. Sem o outro, não teremos nem mesmo condições de viver. Quando renascemos após um derrame, todo esse processo é bem parecido, já que perdemos a mobilidade de boa parte do corpo, e algumas funções como engolir e controlar a bexiga e o esfíncter, ficam comprometidas. Mesmo tendo algumas semelhanças, há uma extrema diferença: quando nascemos bebês, não temos consciência dessa situação, porém, quando renascemos adultos, toda essa dependência se torna muito constrangedora.

Realmente o processo de reaquisição de autonomia pós-AVC é parecido com o desenvolvimento infantil, mas quando passamos por todas as etapas sendo adultos, temos a dimensão do quanto é difícil aprender a engolir, a sair das fraldas e a dar os primeiros passos sem cair. Durante o meu processo de recuperação, era impossível não me comparar com os filhos pequenos das minhas amigas, porque voltei a ter os mesmos desafios que eles enfrentavam, como se vestir, tomar banho e amarrar os sapatos. Só que o cérebro deles era novo, e o meu estava profundamente machucado, ou seja, eles aprendiam rápido e logo concluiriam a tarefa em cem por cento. Eu não. E ao constatar que minhas ações seriam eternamente limitadas, me vinham as revoltas, tão típicas em qualquer processo de independência.

Com o cérebro lesionado, facilmente perdemos o controle das nossas emoções, e exatamente por isso choramos e esbravejamos com tanta impulsividade. Se situações como essas podem ser identificadas como “manha” em crianças, em adultos somos designados como “egoístas” ou “ingratos”. Só que é duro ter que reaprender a viver em um mundo com tão pouca mobilidade e autonomia. É complicado depender dos outros, por mais que a gente os ame.

Junto com o AVE também surgiram novas contas no meu orçamento, muito além do meu planejamento financeiro. Afinal, nem todas as terapias e cuidados foram bancados pelo plano de saúde, e assim, tive que gastar todas as minhas economias. Foi um Deus-nos-acuda, mas tive sorte por ter dinheiro guardado. Muitos dos meus amigos sobreviventes não tinham a minha condição, e até voltaram a ser dependentes da família. E uma coisa eu te digo: enquanto algumas famílias são unidas e apoiadoras, outras não possuem esse mesmo sentimento acolhedor, e dever valores financeiros a elas é pior do que dever à Coroa Portuguesa no século XIX: os juros são altíssimos, e cobrados com correções monetárias. E assim, nossa tão sonhada independência fica cada vez mais distante e ilusória da nossa estagnada realidade.

Além da recuperação motora em ações “simples”, como andar e comer, outra necessidade primordial após um derrame é a de voltar a fazer atividades básicas, como cortar carnes e legumes em uma tábua ou arrumar uma cama. Tais situações são impossíveis de serem realizadas com hemiparesia (a deficiência que dificulta a mobilidade da metade do corpo, principalmente na região de uma das mãos). Caso você nunca tenha passado por isso, peço que tente realizar estas atividades utilizando apenas um dos membros superiores, e então compreenderá que se trata de uma missão quase impossível sem algumas técnicas ou adaptadores. Eu apenas consegui cortar batatas com o auxílio de uma tábua adaptada (com pregos para segurar o alimento), e só consegui arrumar a cama, colocando-a no meio do quarto e me locomovendo em volta dela para esticar cada ponta do lençol ou cobertor. Aprendi isso com outros sobreviventes nos meus amados grupos de apoio. Lá também aprendi a amarrar cadarços, sacolas plásticas e a colocar casacos de inverno utilizando apenas uma das mãos. Porém, é importante dizer que todos esses macetes (e muitos outros) podem ser ensinados por um profissional superimportante da reabilitação: o terapeuta ocupacional.

Nenhum processo de independência é conquistado sem luta, e no meu caso, foram dois caminhos utilizados em minha recuperação: o de recuperar tudo o que poderia por meio das sessões de terapias e o de me adaptar ao realizar várias das minhas atividades cotidianas de modo diferente, do jeito que consigo realizá-las. Com o tempo, percebi que fui conquistando cada vez mais os meus movimentos e o meu espaço, e hoje me considero totalmente independente.

Não sou nada parecida com D. Pedro I, mas vejo certas semelhanças no meu processo de independência com o que aconteceu no meu país em 1822: tive que abafar várias revoltas (internas e externas), formular uma boa rede de apoio (transformando amigos em Josés Bonifácios e vizinhos em Donas Leopoldinas), reinventar muita autoconfiança e uma fé inabalável e determinar um marco que fez toda a diferença na história: o meu Dia do Fico, que foi o dia em que decidi que iria continuar vivendo e ser feliz mesmo com as minhas limitações.

Atualmente a palavra “independência” tem um significado muito mais doce para mim, assim como o feriado nacional de Sete de Setembro, em que celebro intimamente a minha independência pós-derrames. E quer saber de uma coisa? Desejo que toda pessoa com lesão cerebral adquirida tenha esse mesmo gostinho de liberdade que faz parte da minha rotina. Seria esse o sonho que hoje descreveria naquele caderninho de perguntas e respostas.

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