Sobre a experiência de ler “Em Busca do Tempo Perdido”

Leitora conta como foi encarar as quase 2,5 mil páginas da obra-prima de Marcel Proust que fala sobre o tempo e a memória

Como “Em Busca do Tempo Perdido” é um romance longo e às vezes difícil, passei meses em companhia de Marcel Proust (1871–1922) e seus personagens – e sinto agora que eles fazem parte da minha vida. Por isso resolvi anotar minhas impressões. Não escrevo como alguém que analisa a obra de Proust. Longe disso. Escrevo como quem conta uma aventura.

Nunca tinha pensado em ler o livro, o que hoje acho um tanto estranho, já que sou uma leitora ávida desde criança. Era um daqueles títulos que eu tinha certeza de que um dia leria, como se fosse natural que isso acontecesse. Pela experiência acumulada, a minha crença não é totalmente sem sentido. Mas o tempo vai passando e alguns desses clássicos continuam escapando.

Desta vez peguei outro livro que estava há anos na prateleira: “A Lebre dos Olhos de Âmbar”, do inglês Edmund de Waal. Logo no primeiro capítulo, o autor apresenta um antepassado, Charles Ephrussi, e menciona que ele teria sido uma das inspirações de Proust para o personagem Charles Swann. Isso bastou para que me decidisse a ler “Em Busca do Tempo Perdido”. Da mesma forma que faço quando pesquiso nomes de pessoas ou lugares citados em um texto que estou lendo. Um nome leva ao outro, cada vez mais distante do ponto de partida.

Então peguei emprestada de meu irmão Manoel a edição de “Em Busca” da Ediouro, tradução de Fernando Py. Ao me entregar o primeiro volume, meu irmão me contou que só havia conseguido ler até a página 60. Me assustei e me propus a, pelo menos, chegar ao ponto em que ele parou. Pois cheguei à página 62 e lá encontrei um trecho que me pareceu intransponível. Nele, o narrador descreve a igreja da cidadezinha de Combray onde assistia à missa quando criança. Eram tantos detalhes que me perdi. Não avançava. Insisti três, quatro vezes seguidas. Meu cérebro se desligava da leitura e eu era obrigada a recomeçar. Então optei por pular o trecho intransponível, que eu estava encarando como um mangue em que só podia afundar. Não estaria mentindo se dissesse que deixei de ler apenas duas frases de “O Caminho de Swan”, mas seria uma colocação maliciosa. As duas frases que falavam da igreja de Combray ocupavam quase três páginas.

O artifício da fuga funcionou. A partir daí a leitura fluiu e percebi que conseguiria avançar. Foram quase cinco meses convivendo com Proust. Em novembro de 2021, terminei “O Tempo Recuperado”, que previra ler em janeiro ou fevereiro de 2022. Tive novos momentos de dificuldade para avançar nos livros 5 e 6, mas foram menos angustiantes. No primeiro livro, a dificuldade para ler uma página poderia me levar a abandonar a leitura e talvez nunca mais abrir “Em Busca do Tempo Perdido”. Já nos livros 5 e 6, eu sabia que iria encontrar uma forma de contornar a dificuldade e que chegaria ao último volume, alvo da minha curiosidade, já que os comentários sobre a obra de Proust sempre mencionam com admiração o fechamento que ele faz em “O Tempo Recuperado” (a esta altura, eu já tinha lido vários artigos sobre Proust e sua obra monumental). O que me ajudou a avançar apesar de achar que esses dois volumes, o 5 e o 6, são os mais cansativos – com grandes momentos, como a morte de Bergotte, no livro 5, e as reflexões sobre a dor provocada pelo abandono da amante, no livro 6 – foi a aceitação de que não conseguiria, em uma única leitura, prestar atenção e absorver tudo que Proust escreveu. Pode parecer bizarro, mas é muito lógico que um livro tão longo, que exige tanto empenho do leitor, demande mais de uma leitura. “A vida é curta e Proust é longo demais.” – disse Anatole France, fornecendo a justificativa para quem descarta a possibilidade de ler os sete volumes de “À La Recherche”.  Eu cheguei à conclusão oposta. Proust merece ser lido mais de uma vez e a brevidade da vida é uma boa justificativa para esse empenho.

A primeira observação que anoto sobre a obra de Proust diz respeito ao expediente que ele utiliza desde o primeiro capítulo, quando registra a vigília do menino que não adormece profundamente e deseja a presença da mãe. O que Proust faz é descrever com detalhes mínimos e precisos o que se passa em dada situação, como o momento em que o menino vai para a cama, ou em dado lugar, caso da descrição da igreja de Combray. Nesses trechos, é uma combinação de duas habilidades que se vê: a habilidade de observação (enorme!) e a habilidade para encontrar as palavras certas para descrever algo. Habilidades que, somadas, resultam numa descrição tão precisa que acabamos por nos identificar: se não tudo aquilo que ele conta, pelo menos partes daquilo nós também vivemos ou pensamos ou sentimos algum dia. Então, vamos sendo fisgados pelo escritor que atua como um quiromante que nos lê e diz coisas que nos espantam. Como ele sabe? Principalmente: como ele encontra as palavras para descrever algo que eu só balbuciaria de forma confusa? Um exemplo bem simples: Proust fala da experiência de despertar, tema recorrente ao longo do livro porque o narrador entende os sonhos como a oportunidade de experimentar “uma outra vida que não a nossa”. Ao acordar, “desertamos do outro tempo” e vivemos a experiência de esquecer, queiramos ou não, o que vivemos enquanto dormíamos porque “se se trata de uma ideia que o sono forjou, ela depressa se dissocia em fragmentos tênues, incontroláveis.” Fragmentos tênues, incontroláveis – me parece uma perfeita descrição da experiência de lembrar/esquecer um sonho nas horas seguintes ao despertar.

“Retrato de Marcel Proust” (1892), obra de Jacques Emile Blanche (1861–1942), parte do acervo do Museu d’Orsay. (Foto: Reprodução)

Voltando as duas habilidades de Proust que citei acima, ambas revelam um pensamento que se aprofunda nas mínimas vivências, nada é vivido com superficialidade, nada é contado com ligeireza. É uma reação à angústia provocada pela passagem do tempo: a paisagem, os momentos íntimos da família, os encontros com a avó ou com as meninas na praia são sugados com intensidade para serem guardados na memória, para serem recriados e registrados depois.   

“Em Busca” evolui em proporção áurea: o ponto final nos faz ver o percurso de uma forma nova, tudo que o autor nos deu desde a primeira página faz mais sentido – tudo estava lá desde o início. A conclusão no sétimo livro, “O Tempo Recuperado”, valoriza o que foi contado nos seis livros anteriores. Provavelmente reler Proust deve ser uma experiência mais agradável do que ler pela primeira vez por causa dessa construção espiralada em que uma linha do primeiro livro é um resumo do que encontraremos nos seis volumes seguintes: “a realidade só se forma na memória”.

Homossexuais e aviões

Que um grande escritor como Proust tenha registrado algumas experiências muito mundanas relacionadas com a tecnologia (descobrir o voo dos aviões, usar o telefone para matar saudades) e com fatos históricos (a Grande Guerra, o caso Dreyfus) é uma regalia para nós que o lemos 100 anos após sua morte. É lindo o trecho de “Sodoma e Gomorra” (livro 5) em que o narrador vê um avião pela primeira vez. Ao ouvir o barulho do motor e deduzir que terá a chance de ver um aeroplano, ele chora e diz: “Fiquei tão emocionado como o poderia ter ficado um grego que visse pela primeira vez um semideus.” No último livro, ao falar da vida em Paris durante a Grande Guerra, ele nos leva pelas ruas vazias até próximo da Pont des Invalides, onde militares de países aliados em folga por poucos dias, entre eles indianos e africanos com suas roupas coloridas, tentam “ver” a cidade em meio à escuridão do blackout. É uma cena linda e trágica, assim como é desesperado o encontro dos homossexuais na estação de metrô esvaziada após o soar das sirenes, que ele apenas menciona. O escuro os protege e os libera.

Os homossexuais são o segundo grande tema de “Em Busca do Tempo Perdido”. Muitos personagens têm experiências sexuais com pessoas do mesmo sexo. O narrador não entende o que está se passando em torno dele, recusa-se a acreditar nos comentários maliciosos. Deve ser Proust usando de artifícios para expressar uma ingenuidade que amorteça o impacto de tantos amores “invertidos”, como se ele, o autor, não os conhecesse.  Seria natural que o próprio narrador fosse homossexual, mas não é. Acho que foi uma decisão acertada de Proust. Do contrário “Em Busca do Tempo Perdido” teria sido encarado e classificado desde o lançamento como uma obra gay, o que seria reducionismo.

A apresentação dos personagens em diferentes momentos de suas vidas constitui a trama de “Em Busca”. Eles são muitos, sendo que vários são antipáticos. Alguns são detestáveis: o ardiloso Morel, a “socialite” Verdurin, a teatral Duquesa de Guermantes, a interesseira Odette. Constritos pelo papel que representam na sociedade onde circulam, são todos reservados e muitas vezes, falsos. Charlus é o mais trágico por ser inteligente e se entregar a uma paixão desastrada com um homem mais jovem. Me chamou a atenção que figuras importantes dentro da história são apresentadas de forma superficial: Swann (todos falam dele, mas nunca sabemos o que ele pensa) e o próprio narrador. A presença do narrador é cercada por um efeito que me pareceu cinematográfico: quando outros personagens falam com ele, é como se falassem com uma câmera que conecta o mundo “do tempo perdido” ao mundo do leitor, ou seja, eles falam diretamente conosco. Isso ocorre porque o narrador se preserva na maior parte do tempo, evitando diálogos em que se exporia. Com exceção das conversas com Albertine, ele fala muito pouco, mas conquista a confiança de todos, que se abrem com ele. O narrador está lá para nós estarmos lá.

Encarei “Em Busca do Tempo Perdido” em muitos momentos da leitura como um ensaio filosófico. Seu maior tema é o tempo e a memória, que são explorados por Proust através de pequenos atos em que associações geram reminiscências, caso da cena da madeleine mergulhada no chá, que se repete com outros elementos. No mundo proustiano, tempo e memória nos fazem humanos e nos fazem seres angustiados. Pequenas e grandes iluminações brotam de experiências caseiras, de momentos íntimos e da vida social. O narrador busca desesperadamente uma forma de lidar com sua angústia, de pelo menos encará-la com menos sofrimentos, e vai compartilhando suas descobertas conosco.

Para os futuros leitores de Proust, sugiro que folheiem mais de uma tradução em busca daquela que parecer mais fluente. A rigidez do texto traduzido pode matar a aventura de ler Proust antes que ele tenha tempo de descrever a igreja de Combray.

Túmulo de Proust no cemitério do Père-Lachaise, em Paris. (Foto: Olivier Bruchez/Creative Commons)

Livro

“Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, com tradução de Fernando Py, foi publicado mais recentemente pela editora Nova Fronteira em uma caixa que reúne as quase 2,5 mil páginas da obra.

Há também uma edição da Biblioteca Azul, um pouco mais de difícil de achar, em que nomes conhecidos da literatura brasileira – como Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Lucia Miguel Pereira – se revezam na tradução dos sete volumes.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Sobre a experiência de ler “Em Busca do Tempo Perdido””

  1. Mariella Monteiro dos Santos

    Gostei muito da sua resenha/crítica/diário de bordo. =) Pra mim, encorajou-me a ler a obra, decisão sempre adiada. Obrigada, Marleth!

  2. Meu pai era um admirador de Proust, mas dizia que não era fácil. Talvez por esperar o pior (hehehe), eu li com certa facilidade. Depois deste texto me deu vontade de reler.

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