Proust, o escritor da memória, cem anos depois

Há um século, "Em Busca do Tempo Perdido" fascina leitores de todo o mundo

Em 2022, Paris comemora o centenário de duas datas que marcaram o mundo dos livros ao longo do século passado. Uma delas é incrivelmente feliz: o irlandês James Joyce publica justamente na França – e não em qualquer país de língua inglesa – o seu Ulysses, o livro que mudaria a história do romance para sempre. A outra data, em novembro, marca o fim do mais importante projeto de literatura moderna na França: em novembro, morria Marcel Proust.

Proust viveu apenas cinco décadas. Podia nem ter sobrevivido: desde o nascimento, foi sempre frágil, sempre pareceu que estava a um sopro de deixar este mundo. Além de tudo, chegou num momento de imensa confusão – Paris, que em geral é vista como uma cidade dos sonhos, vivia dias infernais, primeiro com a guerra contra a Prússia de Bismarck, depois com a repressão duríssima à Comuna.

No ano de 1871, quando Proust nasceu, os parisienses chegaram a ter de se alimentar de cães e gatos – até de ratos – enquanto durava o cerco à cidade. Os animais do zoológico foram devorados por cidadãos que já não sabiam o que fazer para sobreviver. Os pais do menino Marcel tinham uma vida razoavelmente estabelecida, mas mesmo assim o ano foi difícil.

Das cinco décadas que viveu, Proust usou apenas a última para escrever os sete volumes que fizeram dele o mais importante escritor de língua francesa de seu tempo. Antes disso, teve uma vida de muitos prazeres, salões, romances (sua homossexualidade, embora não confessa, é dada como certa, e ele chegou a ser pego em flagrante pela polícia numa invasão a um bordel de prostituição masculina) e de amadurecimento da escrita.

Antes do “Em Busca do Tempo Perdido”, Proust já havia se dedicado a trabalhar em revistas (o único emprego fixo que teve na vida, e que pouco durou, já que ele conseguiu um atestado médico e nunca mais voltou), a traduções (mas seu inglês era imperfeito, e ele precisava da ajuda da mãe), e a textos curtos – como os que geraram o volume “Os Prazeres e os Dias”.

A vida dele era também marcada por um catálogo de doenças, incômodos, ansiedades e preocupações. Aparentemente, ele não passava um dia sem falar em dores, no seu coração, que achava frágil, na asma, nas várias alergias (inclusive a perfumes e às flores de que mais gostava); convivia com tremores, com suores, com dores em toda parte, dos pulsos aos olhos; por medo da asma, não saía de casa sem peles e casacos; achava sempre que ia morrer, e parecia ter imensa autopiedade.

Levado aos livros pela mãe, conheceu também nomes importantes da literatura francesa em suas passagens pelos salões. Frequentava o salão da viúva de Bizet, por exemplo, conversava com Anatole France, e na nova geração teve entre seus pares André Gide – que orientou a editora a recusar seu primeiro romance, algo de que se arrependeria amargamente mais tarde.

O primeiro livro dos sete volumes que compões “Em Busca do Tempo Perdido” saiu em 1913. Ali estava toda a gênese do projeto: as frases musicais e inacabáveis; a descrição da vida na pequena Combray; o dia a dia de uma família que era exatamente igual à sua, embora isso não seja dito em momento algum; o desenvolvimento intelectual e afetivo do menino narrador, que claramente é Proust; a beleza do campo, a descrição impiedosa e ao mesmo tempo cheia de compaixão daqueles personagens que cercaram sua infância.

A série continuaria a sair pelos nove anos seguintes de sua vida, embora ele jamais tenha conseguido revisar os três últimos livros – a morte por pneumonia chegou em 1922, e coube a seu irmão Robert editar e publicar os volumes finais da história.

Além do Goncourt, o prêmio mais importante da literatura francesa, a recepção foi arrasadora. Henry James disse que lia Proust com “inconcebível tédio”, mas também com o mais incrível êxtase. Graham Greene disse que era o melhor romance do século Sommerset Maugham foi mais longe e classificou como a maior obra de ficção já produzida pela humanidade.

O livro consumiu boa parte das energias e da vida de Proust, principalmente a partir de 1919, quando ele decide praticamente se retirar do mundo em que vivia, trancar-se no quarto e se dedicar aos quatro volumes que ainda pretendia escrever. Dormia durante o dia, para durante a noite trabalhar escrevendo e reescrevendo cada uma das frases que compõem as 4 mil páginas de seu romance.

Cem anos depois, a obra dele é absolutamente incontornável. Na França, é colocada na mesma altura dos livros de Balzac e Flaubert; no modernismo, talvez só tenha como rivais o próprio Joyce e uns poucos outros nomes, como Thomas Mann, Kafka e Virginia Woolf.

Neste ano, certamente haverá comemorações em todo o mundo, novas edições, textos sobre Proust. Tudo para lembrar o menino franzino que se transformou no auge da literatura francesa em seu tempo.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima