Nunca fomos modernos

“- Não quero saber do lirismo que não é libertação.” (Manuel Bandeira) No mês do centenário da semana de arte moderna, desafiamos nossa auto-imagem de país do século XXI com o episódio do espancamento até a morte de um jovem […]

“- Não quero saber do lirismo que não é libertação.” (Manuel Bandeira)

No mês do centenário da semana de arte moderna, desafiamos nossa auto-imagem de país do século XXI com o episódio do espancamento até a morte de um jovem imigrante congolês na calçada de uma das mundialmente famosas praias da cidade “maravilhosa”, o Rio de Janeiro. Enquanto os jornais, televisão, editoras, escolas e universidades apresentam suas mais novas reflexões sobre a nossa modernidade, agora centenária, e esclarecem para os jovens incautos o que foi esse movimento que pretendeu nos tirar do atraso estético e intelectual, oferecendo uma interpretação de país que inspirava-se nas vanguardas europeias, mas com uma pitada de originalidade tupiniquim, apresentando-nos como um gigante com a cabeça nas nuvens, mirando o horizonte promissor, e os pés fincados na terra fértil e generosa, olhamos, estáticos, as cenas do espancamento e morte e abandono do corpo do jovem negro ao lado da barraquinha chamada (tão ironicamente!) de Tropicália, o movimento que se alimentou, com a boca faminta e escancarada, da antropofagia osvaldiana, e digeriu e expeliu um produto que era só nosso outra vez, mais uma jabuticaba artística, literária, musical, cinematográfica, nova, sempre nova, novíssima, a demonstrar que por aqui estamos sempre nos reinventando, como quem tenta e fracassa e com vergonha livra-se do que fez e já anuncia um outro projeto infalível, como os planos do personagem Cebolinha, como os partidos políticos que mudam de nome, algo sempre surpreendente e arrebatador, enquanto a sombra etérea da violência do feitor espreita, dia e noite, sem descanso e sem preguiça.
Irônico, nesse pensar sobre modernismos e tropicalismos, o discurso de Caetano Veloso quando disse, radical e profético, diante de uma plateia ensandecida de jovens dos anos 60, que o vaiava sem parar, depois de tê-lo aplaudido entusiasmada há apenas um ano: “Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada.”

A morte do trabalhador informal, estrangeiro sem garantias, negro sem proteção, jovem sem futuro viável, ( Brasil amado não porque seja minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…) não provocou das autoridades federais nem um ai, nenhum ui, ( Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto Que a porta de pobre arromba…). Por outro lado, as redes sociais foram invadidas por ferozes comentários insinuando razões atenuantes aos perpetradores da carnificina, afinal…

Na mesma semana, um sargento branco atirou três vezes no vizinho de condomínio, “pensando que era ladrão”, quando era “apenas” um trabalhador negro voltando para casa. Antes, há poucos dias, o presidente da república deixou-se filmar comendo frango com farofa, como quem interpreta uma cena paleolítica, um chefe de tribo perdida no tempo, despida de qualquer traço de civilização, um ciclope que não cultiva e não cultua e que chama os brasileiros de “ninguém”.

Essa cena (e todas essas cenas!) é o nosso Abaporu; o chefe da nação é o nosso Macunaíma, após cem anos de ilusão, o símbolo dos brasileiros sem caráter algum, cujos filhos bradam, julgando-se moderníssimos:

“Meu pai foi rei!”- “Foi!”/”Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.

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