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Macabéa, da novela "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, é uma das personagens mais pungentes da literatura brasileira

Macabéa, da novela “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, é uma das personagens mais pungentes da literatura brasileira. Uma moça cheia de sentimentos não traduzidos. Mas não infeliz. Ou sim, quando olhamos para ela, princípio da incerteza. Uma natureza mutável. Só percebeu que sua vida era miserável diante das promessas de um futuro feliz ditadas nas palavras da cartomante. Um futuro que se desfez em dois passos na calçada. Uma felicidade que escorreu pela boca na forma de sangue: a hora da estrela.

Judá Macabeu resistiu ao assédio dos gregos que queriam anular o espírito judaico na longínqua Palestina do século II antes da era Comum. Resistiu pela força, pela astúcia, pela tática de agir e fugir sempre que possível e necessário. Os macabeus venceram seus inimigos e restauraram a fé no templo. Na hora de acender a menorá, o azeite ungido só daria para um dia, mas deu para oito. Os sete dias do tempo e o oitavo dia do milagre. Afinal, só um milagre para explicar a vida vivida de um povo tão perseguido e mal compreendido.

Macabéa encontrou em Olímpico de Jesus seu afeto e seu maltrato. Você parece cabelo na sopa. Poucas descrições na literatura evocam tanta repulsa e nojo, tanto descaso, falta de cuidado. Macabéa, porém, não sabia que poderia ser tratada de forma diferente: ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas eram assim mesmo. Mas não negava a si nenhum segundo de satisfação, quando conseguia reconhecer isso. Na solidão improvisada de seu quarto, ouvindo Una furtiva lacrima, recortando os reclames das revistas, enchendo o café de açúcar até sentir náusea, sonhando “com fome de tudo”.

Há um quê da Joana do primeiro romance nessa Macabéa, último suspiro da autora, pertíssimo do coração selvagem. Uma linha invisível que liga o desejo da menina que quer agarrar o ar, saber “o que é”, a cabeça intensa de pensamentos como uma “chaleira fervendo”, a essa moça pobre e seca , vivendo de coca cola e cachorro quente, que nunca comeu carne, que é datilógrafa sem mal saber ler, ouvindo a rádio relógio com suas curiosidades sobre o mundo, moça virgem com seus suspiros noturnos, envolta em tantos mistérios não contados pela mãe ausente, ausência percorrendo a espinha como um arrepio de frio ao longo de toda a obra e toda a vida.

E há o eu-leitor que se debate com o texto que parece estar sendo criado à sua frente, como a experiência da vida, a imanência das coisas com o convite ao discernimento pendendo da mão frágil e suada. Uma história cujo narrador “onisciente” – pobre Rodrigo, sem sobrenome – encontra o limite do que acredita saber e duvida ser capaz de dar um fim que só depende dele dar, mas sabe que se trata do fim da vida da autora que também se esvai e a garota Joana e a moça Macabéa também precisam, um dia, enfrentar essa última (explosão).

A hora da estrela é a de seu nascimento ou sua morte? Afinal, seu brilho, quando chega aos nossos olhos, é incerto da persistência de sua fonte. Ele se realiza quando surge como fato ou quando o fato repercute em nossas retinas? Como saber? como afirmar?

A literatura é essa terceira margem na qual poucos aportam porque é preciso primeiro acreditar que existe a terceira margem e depois fingir que é possível visitá-la e depois criar a ponte ou o barco para chegar lá. E depois que chegar lá, buscar nos braços de Ceres os morangos frescos, recém colhidos.

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