A criança e o livro da escola

Descobri recentemente que as crianças das escolas municipais da minha cidade estão há três meses tendo aulas sem livros escolares

Sou da geração que só foi para a escola aos sete anos. Meu irmão mais velho, portanto, já ostentava os símbolos da identidade de estudante antes de mim e foi assim que conheci a inveja: pasta escolar, uniforme, cadernos, lápis coloridos e, principalmente, livros. Ele, como é comum em quem descobre a inveja nos outros, impedia-me de sequer me aproximar de seus tesouros, depositando-os no lugar mais alto da casa, o que lhe causava uns tantos transtornos, mas que, pelo jeito, compensava, só de me ver como cão faminto rondando a estante, louco de vontade de folhear as cartilhas com as letras e as figuras e de preencher todas aquelas linhas cheias ou pontilhadas.

Quando chegou a minha vez, aprendi a ler em cinco meses. Não atribuo essa proeza a nenhuma inteligência em particular, mas ao desejo acumulado pelos dois anos de espera desde aquele dia em que meu irmão chegou em casa com seus livros e cadernos. Eu curtira aquela vontade pacientemente, fingindo que sabia ler, folheando as revistas de minha mãe e os poucos livros acessíveis da estante da sala, que depois vim a saber se tratarem de um dicionário e de uma enciclopédia com novidades de duas décadas atrás.

Também “escrevia” garatujas indecifráveis sobre as folhas amarelas que meu pai usava como bloco de notas, trazidas de seu trabalho. Eu escrevia aqueles impossíveis e lia como se entendesse tudo. Muito tempo depois , lembrando desses tempos, minha mãe contou-me que eu inventava histórias intermináveis que embalavam o sono da tarde de todo mundo. Eu guardo na memória , principalmente, o cheiro, o formato, a consistência dos meus livros escolares, com aquela pequena história de quatro parágrafos no fim do volume que li extasiado para minha mãe, ela sem acreditar, pensando ser outra de minhas invencionices.

Descobri recentemente que as crianças das escolas municipais da minha cidade estão há três meses tendo aulas sem livros escolares e que as professoras, diligentes como sempre, tiram cópias para ajudá-los em suas tarefas de aprender, folhas em preto e branco, papel fino que amarrota fácil, que se perdem ao menor descuido. Uma tristeza. A prefeitura acusa o governo federal que acusa as transportadoras que acusam as editoras que acusam o governo federal que não dá bola e há quem diga – professores, vejam só! – que não se pode superestimar a importância dos livros, que é só um “recurso pedagógico” e que há outras formas até mais eficazes de ensinar e que tudo isso é apenas tempestade em copo d’água.

Fico estarrecido com tamanha insensibilidade. Não sabem esses políticos e esses doutos que o livro didático é a primeira coisa importante que uma criança tem de sua, e mesmo que não coloque seu nome na sua capa, sabe que ele é seu guia para algo desconhecido e desafiador, é sua felicidade clandestina, seu fio de Ariadne para que ultrapasse os mistérios do labirinto dos conhecimentos do mundo e encha seus dias de prazer e satisfação.

Era assim que eu me sentia, como me sinto ainda hoje, ansioso que fico com algum lançamento de algum grande autor que sei que me ensinará algo mais e diminuirá o vasto deserto das minhas ignorâncias. Como podem pensar que negar livros às crianças é um detalhe que se resolve sem traumas? Meu grande pavor era começarem as aulas e meus pais ainda não terem comprado os livros da escola. Meu coração apertava, palpitava fortemente de um misto de vergonha e temor de não ser capaz de acompanhar as aulas, de não ser capaz de aprender aquilo pelo qual esperei ansiosamente.

Pois não existem mais crianças assim? Lógico que existem, pois é próprio da criança esperar, crer e sonhar. Quem não faz mais isso são os prefeitos, os ministros, os donos de editoras e muitos “educadores” cheios de palavras mortas em suas bocas.

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