100 dias

A imprensa pauta o assunto, as manchetes evidenciam sua “importância" e os analistas fiam e desfiam comentários sobre a atuação do governo até aqui, como se alguma atuação pudesse ser esperada de fato

Não sei bem quem inventou essa tradição sobre os primeiros 100 dias da gestão de alguém. Não importa se o mandato tenha 4 anos, o que dá, mais ou menos, 1460 dias, sem contar os dias bissextos. E que 100 dias seja um percentual absolutamente insatisfatório para avaliar o que quer quer seja, exceto se a pessoa já conseguiu tomar ciência dos problemas deixados pelos 4 anos do antecessor e se já conseguiu visualizar os possíveis caminhos que precisará seguir para tentar fazer algo ou pelo menos impedir que o ruim se perpetue.

Mesmo assim, acostumamo-nos a cobrar algum resultado nos 100 primeiros dias: algo impactante, alguma promessa já cumprida – mesmo que, nunca é demais repetir, sejam 4 anos de mandato para tentar cumprir alguma coisa – algum cenário já transformado. Como uma mágica. Sim, esperamos o resultado de alguma mágica. O péssimo é que tanto os governantes quanto a imprensa , isso sem falar dos eleitores em geral, ficam esperando ansiosos pelos 100 dias, e discutem, nos grupos de WhatsApp, nos almoços de domingo, na roda de cerveja depois do futebol, nos happy hours da sexta feira, como foram, como deveriam ter sido e, dependendo do lado político em que se encontram, da satisfação, da decepção ou do “eu sabia” que ia ser assim, não importa o que possa ter acontecido ou não acontecido nesses 100 dias.

A imprensa pauta o assunto, as manchetes evidenciam sua “importância” e os analistas fiam e desfiam comentários sobre a atuação do governo até aqui, como se alguma atuação pudesse ser esperada de fato. Mágica, queremos mágica!

Imagino uma feijoada, eu que gosto de fazê-la na panela de ferro, sem pressão ( sim, é uma metáfora): como esperar algo da feijoada depois de 15 minutos se eu sei que ela só estará pronta para ser provada depois de duas horas? O que esperar do feijão, da costelinha, do bacon, do paio, da orelha, da língua, do caldo, quando não deu tempo de cozinhar minimamente os ingredientes? Serei um mau cozinheiro porque não fui capaz de oferecer nada aos meus convivas nesse curto espaço de tempo?
Há algo porém, que pode ser visto: o mise en place. Se eu escolhi bem os ingredientes, se eu deixei o feijão de molho, se eu cortei fininha a couve, se eu dessalguei corretamente a costelinha, isso é um bom indício sobre o que terei oportunidade de provar depois de pronto. Mas não é isso que se cobra dos governos depois dos 100 dias. E é o que deveria ser observado: quais intenções foram declaradas?

As condições de executar algumas das promessas estão sendo construídas, como, por exemplo, uma boa base parlamentar para aprovar reformas necessárias? O corpo técnico e político escolhido para governar é de gente capaz de expressar os interesses e as expectativas dos eleitores em geral? As manifestações públicas do governante apontam para os temas sensíveis que fizeram com que a maioria dos eleitores tenham votado nele? Enfim, esse governo vai dar uma boa feijoada?

Quem cozinha sabe que é muito chato gente dando pitaco, querendo ver antes de estar pronto, querendo dar dica sobre como fazer, principalmente se você é um cozinheiro experiente. Imagina se o cozinheiro tivesse que apresentar um relatório sobre os primeiros quinze minutos do cozimento e , de alguma maneira, demonstrar que a feijoada é viável e que vai sair e que vai agradar à maioria. Mas na gestão da coisa pública, criou-se essa tradição, e o cozinheiro eleito precisa se virar para apresentar alguma coisa, uns canapés , um caldinho, mesmo que ainda aguado, para aplacar a fome dos convivas.

Que seja. Que se faça. Mas cá entre nós: não diz nada sobre como vai sair a feijoada. E, dependendo das críticas, pode entornar o caldo e estragar o almoço. Vale a pena?

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “100 dias”

  1. Muito bom. Infelizmente o texto carregou apenas parcialmente para mim. Deu erro bem na parte que iria falar sobre o sigilo imposto sobre as imagens do 8 de janeiro, sobre o sigilo às visitas do planalto, sobre o governo pressionar para que os parlamentares retirassem o voto a favor da CPI do 8 de janeiro, sobre o aumento do número de ministérios, sobre o orçamento secreto ter continuado (porém sob o nome de emenda do relator), sobre a não adesão a declaração contra os crimes do ditador Daniel Ortega, sobre a criação de imposto para exportação de petróleo, sobre os ataques ao marco do saneamento, sobre o presidente da APEX difamando o agronegócio na China, sobre o desmatamento recorde na Amazônia e no Cerrado, sobre as invasões do MST e o silêncio do presidente, sobre a moeda comum com a Argentina (pequena inflação de 100% ao ano), sobre financiar gasoduto na Argentina, sobre negativa do presidente em assinar a declaração pela democracia condenando a Rússia, sobre o governo ignorar os avisos dos ataques de 8 de janeiro, sobre o déficit das contas públicas ser o maior desde fevereiro de 1997, sobre o ministro usando avião da FAB para ir a corrida de cavalos (e não foi exonerado), sobre taxar compras internacionais de até 50$ (taxar os pobres??), sobre a compra de móveis de luxo sem licitação, sobre ignorar a lista tríplice para a PGR mesmo após criticar Bolsonaro por isso, sobre a Claudia Raia receber sozinha 5 milhões de reais via lei Rouanet, sobre intenção de voltar a usar BNDES para financiar obras em países vizinhos (e as obras aqui??)….continua. Pra mim já ficou claro que a feijoada vai ficar horrível. Ela ainda não está pronta, é verdade, mas o cheiro que vem da cozinha já comprova: é melhor fugir deste jantar. Que venha o prato substituto previsto pelo regimento do restaurante para esta ocasião de pratos vencidos. Meu sonho é ver a mesma energia que fiscalizava Bolsonaro, fiscalizando o Lula.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima