Podcast – Passagem

A história daquela madrugada é um dos maiores aprendizados da minha vida

Naquela madrugada a agitação foi intensa, pois era hora de partir. Essa hora foi pensada e repensada tantas vezes, comentada com voz baixa nas rodas de conversa e sonhada com intensidade em muitas noites de sonhos intranquilos. E mesmo depois de tanta espera e de tantos planos, a pressa era senhora, avisando para todos que o tempo daquela existência estava no fim. A solução foi deixar tudo para trás e levar o mínimo que se pudesse carregar e que fosse útil na travessia. Mesmo sem saber quanto tempo e qual distância seria necessário percorrer para poder deixar de ser escravo.

Essa sempre foi, para mim, uma das grandes questões da história da Páscoa, da forma como aprendi na minha infância: “Quando deixamos de ser escravos?”

Podemos ser escravos por não conseguirmos enxergar o mundo à nossa volta sem a necessária existência de “donos”?

A história daquela madrugada é um dos maiores aprendizados da minha vida. Fecho os olhos e vejo e sinto tudo: havia muita violência e medo e, para isso, havia uma saída: acreditar. Eu sempre incluí esse termo ao meu conceito de liberdade. “Haverá mortes e violência mas você não morrerá nem sofrerá, se acreditar.”

Outra reflexão que faço sempre, associada a esta, é a de que  não havia um lugar específico para ser livre, mas sim uma atitude necessária a ser tomada. A atitude, não o lugar, era a liberdade. Quem chegou lá, depois de quarenta anos, não chegou a um lugar de liberdade, mas chegou livre a um lugar que transformou em terra da liberdade. Essa diferença acompanhou-me a vida toda, na minha travessia e nas conversas que tenho com aqueles que querem ficar pelo deserto, cansados, incrédulos, irritados, acreditando que poderão ter o que desejam ajoelhando-se e não ficando de pé, caminhando, sem desistir, apesar de o horizonte parecer sempre brincar com nossos sentimentos.

Todo ano lembro dessa história de travessia e todo ano, milhões de pessoas lembram e contam essa história entre si e para os outros. Sem essa narrativa que é passada de geração para geração, sempre acreditei que ficaríamos no deserto. Deixamos o deserto quando acreditamos, quando agimos, quando não desistimos, quando não nos iludimos e quando repetimos, sempre, a história dos preços da liberdade.

Por fim, há algo que também aprendi com essa narrativa e que é, para mim, a essência mesma da ideia de “passagem”, o significado literal da Páscoa. Aprendi que a travessia ocorre quando deixamos de ser quem éramos, quando desgrudamo-nos de nós, desfazemo-nos de quem entendemos que somos. Quem chegou ao fim do deserto não foi quem começou a travessia, mas foi quem conduziu aqueles que seriam livres e sustentou-os quando estavam exaustos e incentivou-os quando estavam descrentes. Mas os que começaram nunca entraram na terra da liberdade. Essa é a dura e bela lição. O preço maior a pagar. Se quisermos uma mudança que seja sólida, duradoura e profícua, temos de fazer um trabalho cujo fim não conheceremos. A liberdade da forma como sonhamos continuará nos nossos sonhos e na nossa esperança de que o que fizermos possa ser continuado pelos próximos e pelos próximos até que o deserto tenha fim. E que a história de nossa participação seja lembrada pelos tempos, como as história que eu ouço desde a minha infância e que agora, mais uma vez, conto aqui, para todos vocês.

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