Podcast: Doutor, doutores

Ser doutor não é receber um título, uma honraria. É um longo processo de aprendizado

Quando me formei em Direito, no final dos anos oitenta, comecei a ser chamado de “doutor”. Eu, que era ainda um moleque de terno e gravata, e era um tal de doutor pra cá e pra lá a todo instante. Uma coisa sedutora, um nível que se pensa ter alcançado, como nos jogos de game, e que dá um status em relação aos outros. Uma barreira de distinção expressa por uma palavra-símbolo que indica “ali está alguém que é diferente do mar de gente igual e que, portanto, exige respeito, ok?”

Para minha sorte e minha salvação da mediocridade de quem pensa assim, logo depois de formado fiz minha primeira especialização e, como se pode imaginar, meu conceito sobre mim mesmo começou a desmoronar. Estudar e aprender, tornar-se alguém que sabe e sabe repartir esse conhecimento, era uma tarefa muito mais complexa do que minha vã graduação foi capaz de me ensinar. Especialista – detestando o termo, porque não me sentia capaz de portar tal título –  resolvi partir para o mestrado, as pernas já bambas do choque de realidade e o rosto já desvestido do falso brilhareco do “doutor” das audiências que agora me carregavam de uma vergonha sincera.

Quando apresentei meu primeiro projeto de mestrado, meu candidato a orientador fez o seguinte comentário: “está bom, o tema é bom, a revisão de literatura é interessante, mas você é bastante opiniúdo, não? ”Fiquei sem saber o que responder. Ele explicou: “Você afirma coisas demais”. Calma, o mestrado vai te ensinar o que as pessoas dizem. E você vai poder dizer algumas coisas também quando for doutor. Antes, não.”

Saí furioso da reunião, encarnando o moleque de terno e gravata que não admitia a ideia de que é preciso saber o Estado da Arte de algo para pedir para sentar no cantinho e então poder dar um pitaco. O Mestrado me ensinou. Foram os dois anos (e meio) mais intensos e ricos que tive na vida até ali. O aprendizado da diferença entre opinião e argumento, informação e conhecimento, discussão e debate. Até as normas de apresentação, que na graduação eu via como uma chatice desnecessária, só para inibir a “criatividade” do moleque, revelaram agora  o seu sentido democrático, de permitir compartilhar os diversos estudos de maneira comum, para todos os que pesquisam na mesma área. Aliás, como me beneficiei disso, na biblioteca da Universidade, aquelas benditas fichinhas datilografadas, que mundos abriram para minha pesquisa bibliográfica.

Quando defendi minha dissertação, chorei muito na hora do agradecimento. Agora chamavam-me de “mestre”, mas, ao contrário do “doutor” advogado, esse título eu recebia com uma humildade pesada, a da certeza que faltava-me muito, muito mesmo, para merece-lo. Precisava continuar os estudos que apenas iniciara e transformara em um texto provisório, uma contribuição de momento, um fio periférico em uma grande teia de mentes argutas e incansáveis, a tecer o imenso tapete do conhecimento humano.

Fui para o doutorado e foram mais três anos (e meio) de um mergulho vertical em livros, documentos, seminários, debates, viagens, reflexões, versões e versões de texto, agora já sem nenhuma pretensão, sem nenhum arroubo, sem nenhuma certeza. Estudar é um desnudar-se das certezas. É um encontro com tantas vozes e tantas possibilidades de ouvir. Um espetáculo. Nos agradecimentos da minha tese, escrevi: “Agradeço a todos os que me amaram, gostaram de mim, demonstraram simpatia e apreço e mesmo àqueles que simplesmente suportaram minha presença sem reclamação. Aliás, agradeço particularmente aos que reclamaram, ensinando- me a buscar ser melhor. Não teria conseguido chegar a lugar nenhum sem estas pessoas. Minha geografia é humana. As pessoas que eu amo são meu lugar no mundo.” Ainda hoje, quinze anos passados, penso com carinho em todas as pessoas que me estenderam a mão, ouviram minhas queixas, ajudaram-me a ficar de pé, sem condescendência, mas com incontrolável humanidade.

Já doutor, sem ter deixado meus alunos e alunas de Ensino Médio em nenhum momento dessa trajetória, busco repartir a experiência de aprendizado que tive, tentando diminuir a distância entre aquele moleque arrogante e ingênuo da graduação e a pessoa que me tornei com a contribuição de tantos. E continuo no torno, esmerilhando as ideias, buscando dar melhor forma e lustro às coisas que penso e falo, todo dia.

Faço essa reflexão em um momento no qual torna-se necessário lembrar o que significa o processo que resulta nesse título, a sua importância não como uma barreira ou um nível, um salvo conduto para legitimar posições ou cargos, mas como uma experiência de crescimento humano, um vislumbre do que podemos ser e alcançar quando compartilhamos nossos melhores esforços na criação e desenvolvimento de conhecimentos coletivos. E esse processo precisa ser preservado, protegido e estimulado. Eu fui o primeiro doutor na história da minha família, de pai e de mãe. Fui transformado de barro em jarro, pela paciência de quem soube esperar secar a massa que ajudou a modelar e também pela generosidade de perceber que o barro é substância autônoma e também contribui para a sua forma. Que esse esforço nunca cesse. Que nunca deixemos que cesse.

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