Podcast – A mãe do genocida

Ninguém pensa na mãe do genocida. Vai se chamar Adolf, Joseph, Zedong e a mamãe vai cobri-lo de beijinhos

Ninguém pensa na mãe do genocida. Mãe, mamãe, mãezinha, tão orgulhosa daquela barriga enorme, mostrando pra todo mundo, sem se importar com os enjoos, os pés inchados, o cabelo quebradiço, as manchas na pele, o que vale é o fruto daquele ventre, crescendo, chutando, pedindo pra sair pra esse mundo, fazer história. Vai se chamar Adolf, Benito, Joseph, Augusto, Jorge, Zedong, Emílio, e a mamãe vai cobri-lo de beijinhos e vai dar apelidos fofos e tirar muitas fotos pra mostrar para todos essa felicidade que existe porque tem nome de filho.

A mãe do genocida vê o filho crescer entre as outras crianças e o defende das injustiças, dos valentões, dos castigos da escola, do pai ausente ou agressivo, dos vizinhos intrometidos. O filho tem sempre alguma razão que ela torna mais forte, mais justificável, mais evidente. Embora, às vezes, a mãe carinhosa também se vê contaminada pela fúria e bate com o chinelo, com a mão calosa espalmada, acertando as pernas , os braços, e o filho fica com aquele olhar duro, injetado, que a assusta e retrai sua própria raiva e depois de uma tarde de silêncio pesado prepara a comida que ele mais gosta pro jantar e beija-lhe a testa, cheira-lhe os cabelos e o aninha, outra vez, em seu regaço.

Felizes são as mães dos genocidas que morrem cedo e levam para o sempre a imagem do filho promissor e sorridente entre outros amigos que lhe abraçam cheios de camaradagem. Felizes são as mães que não ficam para serem testemunhas da derrocada atroz do filho querido, do castigo que por vezes é o destino de alguns genocidas – o suicídio no bunker, o corpo pendurado no posto de gasolina, a prisão humilhante, o exílio distante, o repúdio veemente dos dedos apontando nas ruas – e, por graças, não precisa ter de sofrer ao ver o olhar no homem assustado e perdido da criança que amou e ama mesmo com tantas histórias que dizem ser ele o responsável, mas ela está ali para estender-lhe os braços, para beija-lo muitas vezes, cheirando seus cabelos molhados por suas lágrimas e seus soluços incontroláveis.

Outras mães, porém, vivem a glória funesta de seus filhos e morrem de orgulho, enterrando-se na crença de que ele está fazendo o melhor pra todo mundo, menos para os ingratos, como os valentões da escola e os vizinhos maldosos, e pensa que nem todo mundo é pra se agradar mesmo, o filho sabe o que faz e cuida dela também, tem casa bonita e vários homens com terno na porta para protege-la dos bandidos. O filho aparece na televisão, em cartazes nas esquinas e as pessoas vestem camisas com as cores da bandeira para festeja-lo nas ruas, gritando seu nome e pedindo a morte de seus adversários. A mãe sente um estremecimento com essas coisas, uma dessas pessoas ressentidas pode fazer algum mal ao seu filho, sempre tão ocupado, tão preocupado com todos. Malditos os que lhe causam esse medo, esse mal estar da violência. E a mãe se recolhe em seus pensamentos de tempos mais simples, mais cálidos, o filho tímido, retraído, com seus bonequinhos e seus carrinhos, brincando no quarto, sob seu olhar de mãe. Imaginar que seria assim tão poderoso, não consegue esconder o seu orgulho, mesmo que a sensação ruim também não se esvaneça.

Mãe, mamãe, mãezinha, nesse dia, seu dia, o filho lhe faz reverência, e as câmeras de televisão invadem sua casa porque ele vem lhe visitar e trazer algum presente, um mantô, um par de chinelos felpudos, um livro com a foto dele estampada na capa, com suas realizações destacadas nas páginas grossas e brilhantes. Nada importa, pensa ela. Ele estará aqui e ao cheirar sua cabeça com os cabelos já ralos e beijar suas bochechas ásperas será o seu menino outra vez, filho amado, filho querido, nos seus braços será sempre mãe, cega e surda, só sentimento e esperança.

Ninguém pensa na mãe do genocida que nesse dia é lembrado por centenas de milhares de mães perdidas em seus pensamentos, cheias de fúria, ira, ódio, ou mais do que isso, de um sentimento de descolamento da razão e da própria vida que a vida inteira não será mais capaz de apaziguar. Mas ela existe e é mãe. E é, também, o dia dela, mesmo em meio a tanta dor e tanta morte.

Então, viva!

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1 comentário em “Podcast – A mãe do genocida”

  1. E as mães q tem seus filhos assassinados, o futuro destroçado, a esperança eliminada pelo filho genocida de uma anônima mãe.

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