Fiar palavras no dorso escuro da terra: a tessitura de Jussara Salazar

Dois livros revelam a poesia de Jussara Salazar

O tempo é assunto constante na poesia: sua passagem, seus efeitos, suas consequências, além de nossa própria existência inevitavelmente amarrada a ele. Alguns poetas tratam a questão de forma direta, analisando seus desdobramentos na memória e na história, enquanto outros utilizam uma gama de metáforas e imagens para criar um efeito plástico e indireto.

Jussara Salazar parece reunir essas duas possibilidades na sua escrita, elaborando o tempo em texturas que se renovam. Os objetos, a natureza, os seres fazem parte de um mesmo ciclo ancestral, sempre gerando sentido e complexidade. Essas texturas temporais são a base de uma poética extremamente refinada, e é sobre elas que escreverei a seguir, focando em dois livros da poeta: Fia (2016), publicado pelo Selo Demônio Negro, e O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros (2020), publicado pela editora Cepe e vencedor do 6º Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura.    

Fia (2016)

O título é imperativo, provoca a ação, e reúne todos os sentidos que serão desenvolvidos ao longo das duas seções em que se divide: Cantigas de passagem e De riscos e mapas. Os poemas desse livro multiplicam a ideia de fio – o fio da faca, o fio do algodão, o fio das palavras – e como esses fios estabelecem a tessitura do cotidiano. O livro é dedicado para as mulheres rendeiras de Gravatá dos Gomes, povoado do município de Poção, em Pernambuco. Embora não identifique localização ou temporalidade, o eu poético parece, num primeiro momento, acompanhar a vida dessas mulheres, mostrando sua relação com o ofício.

Fia esta cantiga
desfia depois
tecer e trançar
Fia esta cantiga
no tear. Em silêncio
como as tuas tias
que teu pai foi pra roça
vestido de noivo
e nunca voltou
Fia esta cantiga
como tua mãe um dia
sem alarde desatou
e teceu
um coração escarlate
no peito de jesus
Fia esta cantiga
e se vires a vida
fia bem depressa fia
Fia
esta cantiga pra passar

No poema, Salazar retoma diretamente a tradição da cantiga e o modo como essa tradição está ligada ao fiar – compondo aqui um tecido oralizado. A noção de tempo também surge nos versos “Fia esta cantiga / no tear. Em silêncio / como as tuas tias”, sugerindo o fiar como herança de família entre as mulheres, ideia reforçada no verso seguinte, que aponta a ausência paterna.

Este, que é o segundo poema do livro, já nos mostra em imagens prosaicas o fio conectando mulheres de diferentes gerações, algo que será constante e que se repete, como evocação, na bela estrofe do poema “Teatro de sombras”: “Essa sombra / é minha mãe tecendo suas penas / Câmara de ecos. Sua voz ressoa / sopro antigo no meio do avelós / bordeando a serra da borborema”.

Além da presença humana, a natureza surge em abundância tanto nos poemas da primeira seção quanto nos da segunda. A impressão que se tem é que tudo está vivo, participando dos dias, mesmo que ninguém testemunhe.

Na hora das almas
A lua risca fios
na cumeeira

A lagarta tece
um casulo
entre as vigas

Feixes de linha
perfuram
o molde bruto

Partitura
cercos
mapas aprisionados

Costurados
entre as frestas
do telhado

Esse poema em especial se encaixa no conjunto por adensar o universo do eu lírico. É assim que a poeta constrói o livro, mostrando desde a menor forma de tessitura diária, o casulo da lagarta, até a maior, compreendida na figura do mapa que dá nome à segunda seção. A geografia também está ligada por fios. 

Outro ponto a ser destacado em Fia é o vocabulário. Naturalmente, a poeta nos remete ao texto como tecido, emaranhado de fios que constituem um todo unificado. Por isso os desdobramentos do livro são tão potentes: Salazar elabora uma linguagem que absorve tanto o bucolismo quanto o barroco, mas propõe uma visão renovada ao sobrepor os significados internos de fio, e as várias imagens, soltas, se conectam por montagem. As palavras que a poeta escolhe são precisas, como nesse exemplo, um dos meus favoritos:

Dos oitis boiando no açude ao meio-dia
das papoulas que sangram ao entardecer
das vigas em forma de cruz no teto
dos rebanhos murmurando amém
dos cães latindo em fúria
deste vazio pleno sem esquinas
carne
mastigada à luz do sol
é que teço artérias em labirinto
fendas
laços no algodão
entre um silêncio e outro
que vem de ti, lavoura de mim

Aqui, o eu se coloca como filtro, aquela que observará o mundo, encontrando seus fios e suas conexões, para então tecer “artérias em labirinto”, compondo o universo poético que, no final, vem da lavoura de si. Reli esse poema inúmeras vezes e as imagens ainda me impactam em sua beleza cristalina e na própria relação que estabelecem com outros poemas. Considero essa uma composição central no livro, descobrimos de onde emana todo o resto.

O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros (2020)

Vários aspectos de Fia são importantes na leitura de O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros. A estrutura de fios será expandida, conectando um projeto ao outro. Além disso, a ancestralidade e o tempo serão tratados ao longo dos poemas, dando ênfase aos objetos como guardadores da existência passada.

O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros também expõe o universo de um grupo de mulheres. Mas, ao contrário de Fia,o livro de 2020 foca principalmente em sua morte. O conjunto é dividido em três seções, bastante diversas entre si: a primeira, Zia, fogo e silêncio, é sobre a tia-avó de Jussara Salazar que teve seus pertences queimados em praça pública e seu nome silenciado por fugir com um homem; a segunda, Maria, a degolada, se detém na história de Maria da Conceição Bueno, brutalmente assassinada em Curitiba; e a terceira, Lamento para Beatriz, é sobre uma cantora soprano que foi atingida na boca por uma bala, vinda da arma de um homem que atirava a esmo. São histórias brutais, e a poeta joga uma nova luz sobre elas.

 Em Zia, fogo e silêncio, o eu poético está próximo da ação, a linguagem é mais direta, mais dura. A maior parte da seção é formada pelo poema “O fogo”, dividido em várias partes, que mostra a queima de um baú contendo as roupas e os objetos de Zia.

Quem incendeia os pertences é Nono, figura que surge embaçada, raivosa, “No amargo peso do coração / o baú levitava em suas mãos”.

tudo aí
são sudários
marcas
pele passos

as roupas de Zia
dentro
engomadas
dobradas
lavadas
quadradas
marcadas
pelas cordas que ontem
como véus vergavam
ao vento
sob o sol seco dos dias
cheirando a tempo e cantoria
agora aprisionadas
aguardavam
a hora da agonia

Fica evidente que as roupas, além de manterem a aura da protagonista que as vestiu, guardam o tempo e as mãos das mulheres que as produziram – ou seja, guardam uma tradição. Justamente por isso o ato da queima é tão simbólico.

Outro trecho, da quarta parte, mostra essa tradição com mais clareza:

Os vestidos
costurados às sombras dos cajueiros
entre pássaros e conjuros
na queda do sol ao entardecer. Feitos
de fios de sonho e ouro
por que arrancar o gesto das mãos
e as cantigas
que lavaram
as manchas do ingá maduro?

Pesa esse ato violento para quem herda a ausência de Zia e precisa lidar com o apagamento da memória.

Em Maria, a degolada, o eu se afasta e mostra o desenrolar dos acontecimentos utilizando uma linguagem mais lírica. Maria da Conceição Bueno foi vítima de feminicídio em 1893, assassinada por um soldado com quem mantinha um relacionamento. O motivo do crime foi ciúmes. Predomina nos poemas dedicados a ela uma ameaça constante, porém velada, principalmente naqueles que começam com o aviso “vigia-te”: “vigia-te o noturno sepulcro / irmã das flores és a irmã da noite”; “vigia-te o olho na paisagem dos pinhais, queima a luz da capela congela / a estrela sombreia a cruz nos vitrais”; “vigiam-te estranhos dias, o século se esfumaça / cortado pelo urro da mata. maria, a bíblica / ressurge como o batista”. O tom geral é noturno, melancólico.

No entanto, em um dos últimos poemas sobre Maria, a poeta ressignifica sua linguagem:

Ultimun carmen:

Dentro de um sonho que passou
dentro da gaveta de guardar
dentro de uma sala está o amor
dentro de um mar
dentro de um livro guarda aquela flor
dentro de um banjo guarda teu cantar
e num tropel de anjos
escuta
o vento que vai soprar
enquanto os sinos dobram
enquanto dura o tempo
dentro de um mar
dentro de um céu que já passou
dentro do horizonte
dentro de uma dor
dentro de uma fonte
que sempre secou
dentro de um véu
dentro de uma ponte
dentro de um fruto
que nunca viçou
dentro de um nunca
se um rio
mora dentro
da aurora de um momento
de um corpo
por um átimo
dentro
de um dentro tempo

Esse é um poema que também aparece, exatamente igual, na primeira seção, sobre Zia. No entanto, seu título ali é “Tempus fugit”. Aqui, após lermos Fia e nos encaminharmos para a última personagem de O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros, percebemos alguns ecos, amarras, com o trabalho anterior da poeta.

Primeiro, a consideração do tempo é fundamental – se em Fia havia apenas a sua passagem e tudo estava vivo em uma experiência de comunhão, o livro de 2020, ao contrário, mostrará o fim abrupto do tempo, a morte. Segundo, a menção a objetos e à natureza retoma outras imagens na poética, imagens que permanecem após a vida humana lhes habitar, e a vida é breve e vasta: um rio que mora dentro da aurora de um momento. A repetição do poema, nesse projeto, cria um elo entre as duas mulheres, reinterpretando a linguagem a partir de mecanismos novos.

Na terceira e última seção, Lamento para Beatriz, a linguagem volta a ser mais direta: “Beatriz. Décimo andar. / o modo como ela ouvia a chuva / um modo panorama / vidros paisagens em time elapsed”. O fato ocorre no Rio de Janeiro, em 2001. Beatriz é morta por um homem que dispara a esmo com uma arma no décimo andar. O eu poético permanece afastado, descrevendo o cotidiano de Beatriz e a cena de sua morte, “saltava / sua voz / a soprano um ícaro / suas asas de vela / as asas as balas / atravessando o espaço”, até que não apenas esta seção, mas todo o livro chega no seu momento mais potente com o poema “Memento mori”:

a minha guerra será a tua guerra
não a guerra dos homens
mas dos pássaros desgarrados

o nosso bestiário será esse
o do contrário nunca jamais
e a minha casa será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o do contrário e dos urubus diários
e a minha carne será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o dos monstros submersos que eunoé lembrará
quando a minha cruz for a tua guerra

então o nosso bestiário será esse
canto perdido sem prumo retalhado
sem dor nem beleza nem terra

e a minha guerra será a tua guerra

Salazar não repete o mesmo poema das duas seções anteriores. Finaliza o livro com esse, convocação à guerra, promessa de que a violência sofrida por estas mulheres será retribuída. No entanto, a guerra aqui se mostra um novo desdobramento da tessitura, dos fios que guiaram os dois livros, porque retoma a experiência de comunhão, legando o bestiário, o fio, entre as gerações de mulheres. Assim, a poeta parece conectar os dois livros, expandindo os sentidos de um para o outro, expandindo o tempo, tecido sensível dos nossos dias e que, afinal, é guia das nossas próprias narrativas.

O trabalho de Jussara Salazar não se fecha em si mesmo. Ao contrário, distribui teias de significado, abrindo inúmeras possibilidades de interpretação e de percurso. A linguagem cria fendas, é altamente elaborada, e recusa qualquer utilitarismo. No fim, os poemas seguem fiando, com outras leituras, outras obras e outros tempos.

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