Falas racistas do governo acompanham ações contra povos quilombolas

Preconceito anima o desmonte de políticas públicas promovido por Bolsonaro, que dificulta até a vacinação de quem vive nos quilombos

Autoridades brasileiras fizeram 94 discursos racistas em pouco mais de três anos. É o que mostra o estudo “Quilombolas contra racistas”, divulgado na última semana. Mais da metade deles saiu da boca do presidente Jair Bolsonaro e de membros do primeiro escalão do governo federal.

Por mais que alguém possa dizer que são “apenas falas sem maior importância”, os dados mostram que o discurso está alinhado à realidade do governo. Segundo o estudo, feito em parceria da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) com a ONG Terra de Direitos, Bolsonaro foi responsável por 18% dos discursos racistas feitos por autoridades nos últimos três anos. Enquanto membros da administração respondem por outros 33%. A lista também tem deputados federais e estaduais, vereadores, juízes e promotores.

O que se observou nos últimos três anos é que o governo não ficou apenas no discurso. A Fundação Cultural Palmares foi esvaziada e seu presidente, Sérgio Camargo, ataca constantemente artistas, intelectuais e a população negra em geral.

O número de certificações de comunidades quilombolas caiu drasticamente e a vacinação desse público só avançou após a interferência do Supremo Tribunal Federal (STF), que também obrigou o governo a distribuir água potável e alimentos para esses grupos durante a pandemia.

“Há um desmonte. Ele [Bolsonaro] prometeu que ia desmontar as políticas públicas, mas muitas pessoas acharam que não. O pano de fundo é o racismo estrutural, que na atual conjuntura encontra instituições muito mais férteis.”

Givânia Silva, coordenadora da Conaq

Perseguição e ideologia

O desmonte começou pela Fundação Palmares, que foi criada em 1988, “voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, segundo o site da instituição. Desde que Sérgio Camargo assumiu a presidência, em novembro de 2019, o número de novas comunidades quilombolas certificadas vem caindo ano a ano.

Camargo já declarou que a escravidão “foi benéfica” e que o Movimento Negro é uma “escória maldita”. Ele atacou religiões de matriz africana ao dizer que “macumbeiros”, não teriam “um centavo” da instituição; criticou as cotas raciais e o Dia da Consciência Negra e afirmou que há “racismo Nutella” no Brasil. Na declaração mais recente, chamou o imigrante congolês Moïse Kabamgabe, espancado até a morte no Rio em Janeiro, de “vagabundo”.

O presidente da Fundação Palmares baniu cerca de 300 livros do acervo da instituição. Para ele, autores como Max Weber, Caio Prado Jr., Câmara Cascudo, Machado de Assis, Eric Hobsbawm e Nikolai Gogol não devem ser lidos (apesar da desculpa de que algumas obras estavam mofadas ou eram anteriores ao acordo ortográfico). Um historiador que teve um trecho de sua tese copiado e incorporado à “justificativa” para o expurgo das obras processou a Fundação Palmares por uso indevido. Em janeiro, a Justiça Federal proibiu a instituição de doar o acervo.

A perseguição não ficou limitada à biblioteca (que teve até seu nome, uma homenagem ao poeta gaúcho Oliveira Silveira, atacado). Em março de 2020, Camargo exonerou três quadros respeitados na Fundação: Sionei Ricardo Leão de Araújo, diretor de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro; Clóvis André Silva da Silva, diretor de Promoção da Cultura Afro-Brasileira; e Kátia Cilene Martins, coordenadora-geral do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra. Em outubro de 2021, a Justiça do Trabalho proibiu o presidente da Fundação de nomear ou exonerar servidores do órgão.

Menos certificações, menos vacinas

Enquanto Sérgio Camargo procura o Manifesto Comunista em uma obra de Machado de Assis, a Fundação Palmares cada vez menos cumpre suas funções legais, o que já gerou processos na Justiça e uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU), assinada por mais de 200 entidades. O número de quilombos certificados desde o início da gestão Bolsonaro caiu 75%. Foram 118 certificações de 2019 a 2021. No triênio anterior, entre 2016 e 2018, foram 476.

Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, o número foi de 70 em 2019; 29 em 2020; e apenas 19 em 2021.

A certificação é o primeiro passo para as comunidades terem suas terras reconhecidas e obterem acesso a programas sociais e políticas públicas. A vacinação contra o coronavírus é um exemplo, já que moradores de comunidades quilombolas são considerados público prioritário. Entretanto, para o governo Bolsonaro, isso faz pouca diferença. A vacinação desse público só avançou após a interferência do Supremo Tribunal Federal (STF), um dos principais alvos dos partidários do presidente.

Moradora de comunidade quilombola em Cascavel, no oeste do Paraná (Lizelly Borges/Terra de Direitos)

Em agosto do ano passado, o ministro do STF Edson Fachin cobrou do governo federal um cronograma de certificação das áreas. Em setembro, Fachin determinou a imunização imediata das comunidades, independentemente do estágio do processo de regularização fundiária. O ministro ainda determinou que o governo fornecesse água potável e alimentos, inclusive merenda escolar, durante a pandemia.

Em seu despacho, Fachin ressaltou que havia divergências entre o que foi informado pelo governo e uma decisão anterior que determinava a distribuição de água e alimentos. “Não há, de fato, para além de dados gerais, informações objetivas que permitam certificar o cumprimento efetivo das ações e, especialmente em quais comunidades quilombolas”, disse o ministro.

Segundo a ONG Terra de Direitos, em dezembro do ano passado, menos de 50% da população quilombola havia sido completamente imunizada, enquanto 73,2% do restante da população brasileira já havia recebido duas doses ou a dose única da vacina. A terceira edição do “Vacinômetro Quilombola” ouviu cerca de 450 mil pessoas em aproximadamente 1,2 mil quilombos. A iniciativa de fazer o levantamento foi tomada porque o governo federal não disponibiliza nenhum dado sobre a vacinação desse público.

Outros problemas apontados pela Terra de Direitos foram a desinformação (pessoas que se recusaram a vacinar por falta de informações oficiais por parte do governo) e a iniciativa de alguns municípios de transferir às lideranças quilombolas a responsabilidade de identificar e comunicar as pessoas que deveriam ser vacinadas. A expectativa é de que os problemas se repitam na vacinação de adolescentes.

Menos de 50% dos habitantes de comunidades quilombolas havia sido vacinados até dezembro (João Vianna/Fotos Públicas)

Os que mais morrem

Uma das primeiras ações de Sérgio Camargo ao tomar conhecimento do assassinato do congolês Moïse Kabamgabe foi tentar desqualificar a tese de racismo. O imigrante seria apenas um “vagabundo” morto por “outros vagabundos”. Em relação a outro caso registrado no Rio, no entanto, fica difícil (até para o atual presidente da Fundação Palmares) negar o racismo.

No dia 2 de fevereiro, o sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra matou a tiros o vizinho, Durval Teófilo Filho, de 38 anos, após confundi-lo “com um assaltante”, conforme relatou o militar posteriormente na delegacia. “Tenho certeza de que isso aconteceu porque ele é preto”, disse a mulher de Durval aos jornais.

Durval Teófilo Filho: morto por ser negro (Reprodução/Facebook)

É uma realidade que pode ser constatada todos os dias. Segundo o Instituto Sou da Paz, em 78% das mortes causadas por armas de fogo no país em 2019 a vítima era negra. Em 61% das ocorrências a vítima era negra e tinha de 15 a 29 anos. É o mesmo índice de negros entre 10 e 14 anos assassinados: 61% do total de ocorrências registradas no país, o dobro dos não negros na mesma faixa etária, 31%.

Outro levantamento, a edição do Atlas da Violência divulgada no ano passado, mostrou que a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes maior do que uma pessoa não negra. Em 2019, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros no Brasil foi de 29,2; já a taxa média de amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2.

Os negros foram 77% das vítimas de assassinato no país em 2019, porcentagem que não variou muito nas edições anteriores do Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto Jones dos Santos Neves, do Espírito Santo.

Para Givânia Silva, os dados provam que discursos preconceituosos estão diretamente ligados aos problemas e à violência enfrentados diariamente pela comunidade negra. “Em sua campanha, Bolsonaro já fazia discursos contra os quilombolas, discursos como nunca havíamos visto. No governo, ele fez um trabalho para destituir os organismos de orçamento e extinguir órgãos. Ao se tornar presidente, uma de suas primeiras medidas foi esse movimento de desmantelamento do aparelho do Estado”.

Em bom português: quem faz discurso preconceituoso ou vistas grossas para esse tipo de fala pode ser tudo, menos “engraçado” ou “bem-intencionado”.

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