Onda bolsonarista reabre feridas da ditadura

Elogios aos torturadores e pedidos de intervenção militar causaram temor em quem lutou pela democracia nos anos de chumbo

João Bonifácio Cabral Júnior era presidente do diretório acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Católica (atual PUC-PR) e um dos líderes do movimento estudantil em 1968, quando foi preso em Curitiba durante o governo de Arthur da Costa e Silva. Ele só seria liberado em 1970, um ano depois do ditador ter recebido o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 2018, aos 78 anos, Cabral sentiu-se ameaçado novamente com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pois acreditava que as perseguições políticas poderiam voltar.

Cabral tinha 20 anos quando lutou pela democracia e viu o Brasil atravessar um período de extrema repressão institucional e política. Hoje, advogado aposentado e ex-diretor da Itaipu Binacional e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), relembra a decepção que sentiu ao presenciar a democracia em risco novamente. “Foi muito triste e revoltante. O governo Bolsonaro negou toda a luta que nós tivemos para implantar a democracia no país”, diz.

Para a jornalista e filósofa Silvia Calciolari, estudiosa da ditadura há quase 30 anos, o governo Bolsonaro foi como um déjà-vu do regime ditatorial, seja por causa dos ataques às instituições democráticas, da violência, da desinformação e da impunidade contra criminosos. “Dá uma tristeza porque depois de tudo o que vivemos, parece que não andamos. Isso nos deixa um pouco angustiados, mas essa angústia é combustível para mais lutas, porque a resistência, a resiliência, é da natureza do militante”, afirma.

A luta de Cabral pela democracia

Cabral entrou na Universidade Católica para cursar Direito em 1966, contrariando o desejo do pai, médico, de que ele seguisse carreira na Medicina. “Eu fugia de casa para assistir os júris do Alencar Furtado, que era um deputado famoso de Paranavaí”, lembra.

Na época em que Cabral era estudante, a Universidade Católica (atual PUCPR) ficava onde hoje é a Universidade Positivo (UP), em frente à praça Santos Andrade. Foto: Cecília Zarpelon/Plural

Dois anos depois, Costa e Silva governava o Brasil e Cabral era um dos líderes estudantis que lutava contra a privatização do ensino superior no país. Na época, o movimento estudantil protestava contra a realização de vestibulares para o curso noturno pago na Escola de Engenharia da UFPR. “Foi uma forma de enfrentarmos a ditadura”.

Cabral e outros estudantes conseguiram impedir a realização do vestibular duas vezes. Na primeira, ele conta, foi um número pequeno de estudantes e cerca de meia dúzia chegou a ser presa. Na segunda prova, Cabral e outros líderes estudantis convocaram os estudantes para estarem às 7h na Praça Santos Andrade.

O plano era marcharem pelos cinco quilômetros que distanciam o prédio histórico da instituição do Centro Politécnico, onde seria realizado o vestibular. O problema foi que o local estava cercado pelas Forças de Segurança fortemente armadas. “Foram muitos estudantes nessa vez. Milhares. Mas nós não podíamos levar eles lá porque a Polícia Militar estava com metralhadoras. Então resolvemos tomar a reitoria”.  

Os estudantes avançaram pela Rua XV de Novembro, pegaram os carros oficiais dos funcionários da UFPR e os cruzaram nas esquinas ao redor do prédio mais importante da instituição, bloqueando as ruas. Cabral ficou do lado de dentro, cercado junto com outros alunos por agentes militares que aguardavam do lado de fora. “Ficaram três camadas de gente. Estudantes do lado de dentro, militares e mais estudantes do lado de fora”, lembra Cabral. “E conseguimos a vitória, sabe. O vestibular não saiu até hoje”, conta orgulhoso.

As prisões

Meses após os protestos contra o vestibular, a União Nacional dos Estudantes (UNE) marcou seu 30º Congresso, de forma clandestina, para discutir os próximos passos da resistência estudantil. No dia 12 de outubro, cerca de mil estudantes se reuniram no sítio Murundu em Ibiúna, a 70 km de São Paulo. Cabral era um deles.

A reunião mal tinha começado quando policiais militares e forças do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) cercaram o local. “Estávamos acocorados, dormindo, descansando, aí ouvimos uma rajada de metralhadora. Era a polícia que tinha chegado com mil e pouco homens da força pública de São Paulo”, recorda Cabral.

“Minutos depois, um policial do DOPS já meteu um pé na porta. Nunca me esqueço da figura: ele usava um lencinho no pescoço, tipo gaúcho, magro. E falou: ‘Vocês falaram que nós éramos o rebotalho da sociedade, nós somos mesmo'”.

Cabral andou em direção a uma fila que se formava do lado de fora com as mãos para cima. Os estudantes foram colocados em ônibus e levados ao presídio Tiradentes. Como também era repórter da Tribuna da Imprensa, em Curitiba, Cabral ficou em uma cela com jornalistas e, após dar depoimento aos policiais, foi solto em São Paulo. “Não fiquei com medo porque eu tinha consciência que tinha que lutar contra a ditadura. E o movimento estudantil me dava essa bandeira de luta. Eu temia, internamente, mas continuei militando”.

De volta a Curitiba, Cabral já tinha outra reunião estudantil marcada, uma vez que as discussões em Ibiúna foram interrompidas. A UNE realizava agora congressos regionais, e na capital paranaense o local escolhido foi a Chácara do Alemão, no bairro Boqueirão. Era 17 de dezembro de 1968, quatro dias após o Ato Institucional 5 (AI-5).

“Um dos vigias que colocamos viu que estavam passando vários caminhões, tipo frigoríficos. Ele os acompanhou e viu que estavam saindo soldados da PM. Quando ele soltou um foguete avisando eu falei: ‘Puxa, de novo vamos ser presos'”. Nesse momento, Cabral e os outros estudantes correram para uma propriedade vizinha. Quando olhou para trás, um soldado carregando um fuzil gritou: “Para senão eu atiro”. “Eu parei. E fui preso”, relata.

As forças de segurança de Curitiba, que já sabiam da realização do congresso, prenderam mais de 40 estudantes. Cabral estava entre os 15 que foram condenados à prisão e levados ao presídio do Ahú. No julgamento da Justiça Militar, apesar do promotor de Justiça ter pedido por uma pena de 10 anos, Cabral foi condenado a quatro. “Eu tive uma formação de firmeza do meu pai. Então tirava de letra a prisão, mas quatro anos eu resolvi não ficar. Resolvi fugir”.

Prédio onde funcionava a prisão do Ahú hoje abriga o Centro Judiciário de Curitiba. Foto: Acervo LUME – Lugar de Memória

A fuga e a formatura

Por requerimento de um advogado, Cabral podia sair da cadeia para realizar exames oftalmológicos em um consultório localizado no Edifício Asa, no centro de Curitiba, sempre acompanhado por dois soldados armados. No fim da consulta, o médico liberava o estudante por uma porta próxima ao elevador, cerca de 50 metros da sala de espera, onde ficavam os soldados. “Eu ia fugir de lá. Já tinha combinado com um tio que ia me tirar do país, porque você só tinha duas hipóteses durante o Ato 5: ou ia para a luta armada ou ia para o exílio”.

No entanto, durante o desenrolar do plano, o Superior Tribunal Militar (STM) julgou um recurso do advogado de Cabral que diminuiu a pena do estudante para um ano e meio. Assim, como já havia cumprido um ano, Cabral desistiu da fuga.

Durante o tempo que passou preso, Cabral continuou estudando para formar-se em Direito. Os colegas, ele conta, datilografavam as aulas e levavam os papéis ao presídio. Cabral chegou a realizar uma prova na universidade, algemado e acompanhado dos soldados armados.

Quando foi solto, em junho de 1970, teve a notícia de que havia sido reprovado por ausência nas aulas. Após repetir o ano, o então estudante de Direito teve a formatura cancelada novamente quando Jarbas Passarinho, ministro da Educação do governo de Emílio Médici, encaminhou um ofício à Universidade Católica suspendendo a colação de grau de Cabral, sob a alegação de “graves irregularidades na vida escolar” do aluno.

Cabral conseguiu se formar um ano depois, em 1973, graças a uma medida judicial. Em seu discurso na formatura, disse: “Não estou aqui pela compreensão da Universidade Católica, mas graças ao mandado de segurança que eu impetrei”.

Procurada pelo Plural, a PUCPR informou, por meio da assessoria de imprensa, que “até o ano de 73 existia a Faculdade Católica, mas as faculdades eram isoladas e tinham mantenedoras próprias. Apenas materiais acadêmicos foram guardados deste período”.

O impacto da ditadura 

“Nós sempre aprendemos a ser pessoas de enfrentamento. O fato do meu pai ter sido preso nunca sequer abalou isso, talvez tenha reforçado. Ele nunca nos disse para ter cautela, era sempre para que tomássemos atitudes. A vida só vale ser vivida se a gente puder ter coragem para lutar pelos outros. Esse foi um ensinamento muito forte que sempre tivemos em casa”, afirma o promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná (MPPR) Rodrigo Cabral, um dos quatro filhos de João Bonifácio Cabral Júnior.

Nascido durante a ditadura, em 1979, Rodrigo conta que a história do pai sempre foi motivo de muito orgulho para a família. Apesar de todo o sofrimento causado, a visão de mundo repassada pelos pais era de otimismo e de luta. “Ele sempre foi um exemplo a ser seguido, mas não tenho a menor dúvida de que [a prisão] teve um impacto bastante brutal na vida do meu pai. Não é você ser solto e acabou”, destaca Rodrigo.

Honoris causa

Enquanto Cabral estava cumprindo pena no presídio do Ahú, o general Arthur da Costa e Silva e o ministro Jarbas Passarinho receberam o título de doutor honoris causa pela UFPR. Conforme revelou o Plural. Até hoje as honrarias não foram revogadas. 

Prédio histórico da UFPR na Praça Santos Andrade. Foto: Cecília Zarpelon/Plural

“Quando uma instituição pública faz uma homenagem a uma pessoa, transmite à sociedade um aval dessa pessoa. A meu ver, nenhum torturador, ditador, nenhuma pessoa que colaborou de forma efetiva com o regime ditatorial do Brasil ou de outros países pode receber uma homenagem pública de uma instituição pública”, critica Rodrigo.

Para ele, o único caminho é rever as homenagens. “Sabemos que às vezes existiram contextos em que foram feitas homenagens, mas é importante que a gente considere que a manutenção ativa de uma homenagem é a permanência de uma comunicação de que o Estado avaliza isso. Por isso me parece que o único caminho compatível com a Constituição é que se revejam homenagens a pessoas que tenham um passado odioso”.

Além do advogado, durante o período da ditadura civil-militar a estimativa é de que no Paraná tenham sido presas 4 mil pessoas, de acordo com o grupo Tortura Nunca Mais. Conforme o próprio MPPR, a lei previa anistia aos que lutaram contra o regime até a data da promulgação, bem como incluiu os agentes do Estado. “Anistia ampla e irrestrita”, como ficou conhecida.

João Bonifácio Cabral Júnior, anistiado político desde 2002, apesar das prisões arbitrárias sofridas durante os anos de chumbo, mantém uma visão positiva sobre a própria trajetória. “Eu tenho orgulho da minha história, eu sou um vencedor”.


Esta reportagem foi produzida como parte do curso “Jornalismo investigativo: da hipótese à construção da narrativa”, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com apoio da Embaixada e consulados dos Estados Unidos no Brasil. O texto contou com mentoria e edição de Mauri König.

Sobre o/a autor/a

6 comentários em “Onda bolsonarista reabre feridas da ditadura”

  1. João Carlos de Freitas

    Parabéns ao Dr. Cabral pela sua história de luta pela Democracia contra a ditadura. Tive o prazer de trabalhar com esse grande Advogado durante o período em que foi Procurador Geral do Tribunal de Contas.

  2. João Emilio Corrêa da Silva de Mendonça

    Parabéns pela matéria! Eu tive a honra e o privilégio de integrado a equipe de advogados liderada com maestria pelo Dr. Cabral na ITAIPU e, além dos brilhantes ensinamentos jurídicos do grande advogado que ele é, os relatos que ele fazia a respeito do triste período da história brasileira, que testemunhei apenas nos anos finais e que terminou com redemocratização na década de oitenta, reforçaram em mim a fé inabalável no Estado Democrático de Direito e na Constituição Cidadã de 1988. O Dr. Cabral é um grande Brasileiro, um grande Democrata e uma grande Pessoa! Sua história, seu relatos devem servir de alerta para as novas gerações.

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