O dia em que prometi a seu Antônio que ele perderia uma ação (e era mentira)

Trabalhar para o pessoal da construção civil era encontrar gente sem dinheiro e com histórias inusitadas

Foi nos idos de 1999 ou 2000. Não sei ao certo. Lembro que era um tempo de grana curta, curtíssima. Época em que as bancas de revistas do centro da cidade aceitavam o escambo de cigarros em troca de fichas de vale-transporte, permitindo escolher entre o luxo de usar o transporte público ou de fumar.

Naquele tempo, o escritório assessorava o sindicato dos trabalhadores na construção civil de Curitiba. Havia um plantão jurídico, de segunda a sexta, das 17 às 19 horas. Certa feita, ao reclamar do horário, fui advertido de que a escolha se dera para permitir aos trabalhadores finalizarem a jornada de trabalho e serem atendidos no sindicato. Depois disso, nunca mais toquei no assunto, constrangido pelo meu murmúrio, típico de alguém mimado pela vida.

Meu plantão acontecia às terças e às quintas. Costumava sair atrasado do escritório, que ficava na esquina da Marechal Floriano Peixoto com a XV de Novembro, no coração da cidade. Atravessava a Praça Tiradentes, onde fica a Catedral, e apressava o passo até à antiga sede do Sindicato, na rua Mateus Leme, pertinho do Shopping Muller. Lá, ao chegar, já me deparava com um amontoado de gente à espera. Quase sempre homens, pois naquela época – não que atualmente seja tão diferente –, os postos de trabalho na construção civil raramente eram ocupados por mulheres.

Eram pessoas de todos os jeitos. Muitos, cansados após uma jornada de trabalho extenuante de serviços pesados, buscavam o sindicato para recuperar seus direitos. Em regra, direitos básicos, como receber as verbas rescisórias e o fundo de garantia.

Também havia quem, desempregado, passasse o dia inteiro à procura de um emprego fixo ou de “bicos” e que ao final do dia chegasse ao sindicato para uma consulta jurídica e à procura de um copo de café com leite e um pão com margarina. Provavelmente, no que seria a primeira refeição do dia.

Não me esqueço de um pedreiro que, ao final da consulta, me pediu um adiantamento da ação dele, que acabara de me autorizar a ajuizar. Ele me disse que não poderia mais uma vez chegar em casa sem comida; não conseguiria olhar a esposa e os filhos nos olhos. Eu tinha somente dez reais na carteira. Uma linda e solitária cédula. Uma fortuna, se considerada minha condição financeira, mas ele precisava mais dela do que eu. Enfim, algum amigo haveria de me pagar uns chopes no Bar do Stuart, destino certo daqueles “dezão”.

Atender no sindicato era uma grande escola. Não só de advocacia, mas de vida. Com o tempo, a couraça foi-se formando e fui me tornando menos sensível às histórias dos meus clientes. Era a mutação do homem para advogado. Aos poucos, conscientemente ou não, até para poder dar conta da dura realidade, acabamos por naturalizar o sofrer dos outros. De gente que carregava sobre os ombros a obrigação de ter de alimentar a família (e a frustração de nem sempre conseguir). Castigada pelo sol, pela chuva, pelo trabalho pesado e pelas humilhações recebidas, essa gente trazia nos corpos as marcas das dificuldades da vida. Tudo muito parecido. Muito sofrido. A vida como ela é, para a maior parte da população brasileira que – quando muito – luta para sobreviver.

Nos dois anos de plantão no sindicato, de todos os operários da construção civil que atendi, há um, em especial, que de vez em quando vem à memória. É o seu Antônio. Ele trabalhou por muitos anos numa grande construtora brasileira que foi à falência no final dos anos 1990 e início de 2000, até que, de modo repentino, viu-se sem emprego e sem que lhe pagassem um centavo.

Entrei com a ação trabalhista dele. Consegui a liberação do FGTS e do Seguro-desemprego e, como imaginado, o processo correu à revelia da empresa, não comparecendo para se defender.

Em uma destas quintas-feiras chego ao sindicato. A secretária do jurídico me informa que seu Antônio me aguarda, porque quer desistir da ação. Eu analiso a fichinha de andamento do processo (ainda eram fichinhas com a acompanhamento anotado a caneta), observo que a sentença está marcada para o dia seguinte e concluo ser mais trabalhoso cumprir a vontade do cliente do que, simplesmente, deixar o juiz sentenciar. Não haverá recurso mesmo. Me decido a convencê-lo a mudar de ideia e manter a ação,

Ando pelo corredor em direção à sala de espera. Deparo-me com uma situação insólita, ao contrário de quando ingressou com ação e do que usualmente acontecia com outros clientes, seu Antônio não veio sozinho ao sindicato. Trouxe consigo sua esposa e três filhos, três crianças. Todos lá chegaram no meio da tarde e, portanto, me esperavam há mais de duas horas. Eu não compreendia por qual motivo ele trazia ao sindicato toda a família, impondo tanto desconforto. Vou até ele.

“Dr. Inácio”, esta era a mais comum das inúmeras maneiras como eu era chamado pelos clientes que tinham dificuldade de entender a pronúncia de Nasser, “preciso retirar o processo”, disse-me ele.

Decidido a explicar racionalmente a inexistência de sentido em tamanha sandice, àquela altura, principio mencionando o andamento processual, para abordar a previsão de uma sentença amplamente favorável, a possibilidade de não ter recurso e de podermos habilitar rapidamente os créditos na massa falida para ampliarmos as chances de recebê-los.

Súbito, após ouvir atentamente minha explicação calcada em alguma esperança de reaver os valores que lhe eram devidos, ele me diz que era “esse o problema”. Incrédulo, eu lhe pergunto, como assim? E, em frente à mulher e os filhos ainda pequenos, ele me conta o motivo de sua aflição. “Sabe que é doutor, há muito tempo eu tive um caso com uma mulher e veio um filho, que deve ter hoje uns 18 anos. Faz muito tempo que eu não sei deles. Mas ela sabe tudo de mim. Ela colocou um chip na minha cabeça e com isso consegue ler meus pensamentos. Quando eu for receber esse dinheiro ela virá atrás de mim e do senhor. Eu não quero problema para nós, por isso, quero desistir dessa ação”.

Impactado pelo que ouvira, sem reação, fitei a família do seu Antônio, recuperei o fôlego e disse-lhe que ele poderia ficar tranquilo, pois a construtora não possuía recursos financeiros para pagar nem aos bancos, muito menos aos trabalhadores, e, assim, ele não receberia um centavo daqueles valores. Após minha resposta, com empolgação, ele me indagou: “O doutor promete?”. Recebeu de mim um sonoro e enfático sim.

Com sorriso no rosto de quem não terá de dividir o dinheiro da ação movida contra uma empresa falida, com a ex-mulher e com o filho abandonado, seu Antônio saiu do sindicato satisfeito, mantendo a ação ante a previsão do fracasso.

Doze ou treze anos depois, descumpri minha promessa, pagando ao seu Antônio os valores relativos aos créditos daquela ação. No dia do pagamento, ele não aparentava preocupação alguma com a ex-mulher que lia seus pensamentos. Até parecia aliviado com o dinheiro recebido e o processo encerrado. Depois disso, nunca mais ouvi falar do seu Antônio, do chip transmissor de pensamentos ou do filho abandonado.

Deste caso insólito me restam estas lembranças pitorescas do dia em que eu convenci um cliente a manter a ação trabalhista dele sob a promessa de insucesso.

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