Mulheres indígenas foram ameaçadas de serem afastadas dos filhos se recusassem acolhimento da FAS

Famílias Kaingang que vieram para Curitiba vender os artesanatos produzidos pela aldeia estão há cinco dias dormindo nas ruas

No mesmo dia em que o Plural noticiou a situação de desabrigo das cerca de 20 mulheres e 10 crianças indígenas que vieram a Curitiba vender artesanato, a Fundação de Ação Social (FAS) realizou uma abordagem na tentativa de oferecer abrigo ao grupo. O problema foi que a única alternativa para o acolhimento seria separar em abrigos diferentes as mulheres com crianças daquelas sem. Ao ter a proposta recusada pelas indígenas, a Fundação retornou, dessa vez com uma intimação: caso as mulheres se opusessem ao acolhimento, as crianças seriam retiradas e levadas pelo Conselho Tutelar.

De acordo com a vice-presidente do Conselho Nacional de Mulheres Indígenas (CONAMI), Jovina Renh-Ga, que está auxiliando o grupo que veio à capital, atualmente, as indígenas estão passando as noites em dois pontos da cidade. Enquanto uma parcela fica sob o Viaduto Colorado, próximo à rodoviária (local das ações da prefeitura), a outra permanece na Rua XV de Novembro.

Como grande parte das mulheres desabrigadas fala apenas o idioma Kaingang, é Jovina quem traduz a angústia e o medo da possibilidade de ter os filhos afastados ao português. “Quando eu estava lá, eles [FAS] pararam e fizeram ameaças. Falaram que se a gente não fosse [aos abrigos], iriam levar todas as crianças”, relata Andressa Barão sobre uma das abordagens feitas na noite do dia 6.

A abordagem

Michel Urânia, conselheiro tutelar da regional Matriz e representante dos indígenas dentro do órgão, estava de plantão na segunda-feira quando foi avisado, por volta das 18h30, sobre a recusa das mulheres Kaingang ao abrigo. “Eu fui lá e descobri que o problema é que a FAS estava oferecendo o acolhimento para elas separadamente. Elas não têm essa confiança na FAS, por isso recusaram. Elas se sentiram mais seguras ali na rua juntas do que no acolhimento separadas.”

O conselheiro então sugeriu à Fundação que todas fossem colocadas juntas numa casa ou sala de uma das unidades, recomendação orientada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). “Eu senti um diálogo muito travado. Tem sempre essa imprudência no diálogo com a FAS. Eles continuam com o mesmo argumento de que a CAPAI [Casa de Passagem Indígena] fechou e aí o acolhimento só tem dessa maneira.”

Próximo das 23h, Michel foi acionado novamente pela FAS, que o pressionou a fazer o acolhimento das crianças. “Primando pela garantia do direito da criança e adolescente, e pela situação ser grave, solicito a presença do CT [Conselho Tutelar] no local (tendo em vista o plantão da Matriz), e em virtude do horário se preciso acione a GM [Guarda Municipal], para que efetue o acolhimento das crianças e adolescentes, caso as mulheres adultas se neguem a ser acolhidas juntamente com seus filhos”, diz parte da mensagem recebida pelo conselheiro.

“Talvez se fosse outro colegiado, se eu não fosse o representante dos indígenas, não tivesse essa noção, não tivesse contato com a CAPAI e se eu tivesse caído na pressão da FAS, eu teria acolhido essas crianças e seria muito complicado porque não tem cabimento”, afirma Michel.

Impasse

Na manhã de terça-feira (7), após a última abordagem realizada ao grupo das mulheres indígenas, representantes da FAS, da FUNAI, do Conselho Tutelar (CT) e do Ministério Público do Paraná (MPPR) se reuniram para discutir o que poderia ser feito nessa situação.

Segundo Michel, o que dificulta uma resposta eficaz à questão é a posição inflexível da maneira com que o acolhimento das pessoas é feito pela Fundação. “A FAS não muda a linha do diálogo e isso vem muito forte dessa gestão. Não existe um diálogo feito com honestidade. Em nenhum momento foi flexibilizada a ideia do acolhimento e isso demonstra que a FAS intencionalmente não quer receber bem os indígenas em Curitiba”, avalia.

Para Michel, além do grave desmonte da estrutura da assistência social na cidade, há um descaso e falta de planejamento da Fundação em relação à população indígena que vem a Curitiba. “Temos informações da FUNAI que estão chegando pelo menos mais 60 pessoas. E agora vai vir cada vez mais. Todo mundo sabe que os indígenas vêm para cá vender os artesanatos e eles não tem nenhum plano? As pessoas que trabalham na FAS têm conhecimento da situação, não fizeram nada porque não quiseram”, critica. 

O promotor de Justiça de proteção às crianças e adolescentes, Francisco Zanicotti, explica que o objetivo da reunião era conseguir promover dignidade e proteção ao grupo, o que, no entanto, não seria possível com a solução oferecida pela prefeitura. “A ideia dada pela FAS de separá-los, levar cada um para um lado, não nos pareceu a mais razoável, até por conta da condição cultural e de as mães não aceitarem ter seus filhos tirados. A nossa função é proteger e não praticar mais uma violência contra eles. A gente chegar lá e o CT arrancar os meninos dos braços das mães, isso não é uma solução.”

Porém, ao final da reunião, nenhuma medida permanente foi estabelecida. O Ministério orientou que o Conselho Tutelar continuasse o monitoramento das mulheres e crianças e que estas só deveriam ser acolhidas caso estivessem sob alguma situação de abuso ou violência. “Nós ainda estamos buscando alguma solução, mesmo que precária. Não gostaríamos que fosse assim, gostaríamos que tivesse um lugar para elas venderem [os artesanatos] e dormirem, mas como não tem, nós vamos tentar uma solução provisória, porque daqui a pouco eles voltam para a aldeia.”

Em julho deste ano, o MPPR instaurou o Inquérito Civil nº 0046.20.163444-4, a fim de acompanhar o funcionamento da Casa de Passagem Indígena de Curitiba (CAPAI). No procedimento, a Promotoria de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos da capital expediu a Recomendação Administrativa nº 01/2021, para que o município adotasse providências para reativação ou realocação dos serviços da Casa de Passagem, de modo que os indígenas que viessem à capital fossem devidamente acolhidos.

O inquérito continua em trâmite, sendo que em 25 de novembro, foi expedido novo ofício à prefeitura, solicitando o número de atendimentos à população indígena durante 2021, bem como encaminhamentos e tratativas com o Governo Estadual para disponibilização de imóvel para funcionamento da CAPAI e/ou cofinanciamento para parceira por meio de Organização da Sociedade Civil. 

O que diz a FAS 

Procurada pelo Plural, a FAS informou que a CAPAI foi fechada em março de 2020 por orientação da Secretaria Municipal da Saúde, em função da pandemia. Na época, os 65 indígenas que estavam abrigados na Casa foram orientados a retornar para suas aldeias de origem, com o fornecimento de passagens rodoviárias.

“Desde então, o atendimento aos indígenas tem sido feito em unidades já existentes da rede socioassistencial do município. Destacamos que ao acolher pessoas, a FAS não separa crianças de suas mães, medida que só pode ser feita por determinação do poder judiciário.”

A respeito das mulheres e crianças Kaingang, a FAS esclareceu que “ofertou os serviços necessários frente às demandas apresentadas, como acolhimento e passagem de retorno para suas aldeias”. 

“As pessoas indígenas que chegam a Curitiba encontram atendimento na Central de Encaminhamento Social 24 Horas (CES), que funciona na Rua Francisco Torres, 500, no Centro. O acolhimento dos homens é feito na Casa de Passagem Rebouças e em hotéis sociais localizados nos bairros Rebouças e Centro. Já as mulheres com filhos, se desejarem, podem ser acolhidas em unidades de acolhimento exclusivas para este público. Todos são levados pelas equipes de abordagem social até os locais de acolhimento, como acontece com as pessoas que se encontram em situação de rua em Curitiba”, finaliza a Fundação.

Reportagem sob orientação de João Frey

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15 comentários em “Mulheres indígenas foram ameaçadas de serem afastadas dos filhos se recusassem acolhimento da FAS”

  1. Simone Cardoso De Moraes

    Como pode tanta ignorância de uma cultura originária, os indígenas não se separam da família eles tem tarefas definidas e que não podem ser feitas por outros, eles não se separam das suas crianças e não dão para outros cuidarem, eles não estão aqui pedindo, estão trabalhando sebos compra se quiser, não quer não comprar, se as roupas e a fisionomia dessas pessoas não lhe agrada não quer dizer que é mendigo.
    País que entende a diversidade? Desde que seja só no papel.

  2. Rosangela Katia vellozo

    Uma parte da sociedade não quer , não aceita, só atrapalha e crítica, os índios estão aqui para vender seus artesanatos, depois retornam para suas aldeias ( que cada dia mais são invalidadas e ninguém fala nada, aí pode, ) por isso a existia a casa para abrigarem ,

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Robson, sabia que o Estatuto da Criança e do Adolescente também determina que as crianças têm direito a ficarem com seus familiares, ao acesso a creche e ao respeito a sua etnia? Sem falar no fato de que os indígenas não estão mendigando, estão trabalhando. Abraço

  3. Rosiane, não vejo você em momento algum responsabilizar a FUNAI que recebe recurso para atendimento aos Indígenas. A Tipificação da Assistência Social não prevê Acolhimento Indígena, quem irá enviar recurso para esse atendimento? São funcionários, alimentação, aluguel de imóvel. É correto o Município retirar dos Munícipes sendo que não recebe verba para isso?

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Agnes, veja, não se trata de isentar a FUNAI, mas aqui em Curitiba a Casa de Passagem era administrada pela FAS e foi a FAS que a fechou. Agora existe uma discussão entre a FAS, a FUNAI e o Ministério Público para tentar chegar a uma solução. Rosiane

  4. A FAS disponibiliza acolhimento, homens ficam em um abrigo, mulheres e crianças ficam em outro. Acontece que os indígenas não querem ficar nesses locais, junto com outras pessoas, querem abrigos exclusivos. Para vender produtos, eles vêm para a capital e apreciam o comércio com o “homem branco”. Depois se fazem de vítimas, dizendo que ficam jogados pelas calçadas à noite, sem apoio. Ora, abrigo existe, é só deixar de mimimi e aceitar o que é disponibilizado. Cabe ao visitante agradecer pelo pão e pela cama que lhe ofereceram e não ficar criticando e exigindo ser tratado a pão-de-ló.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Walter, os indígenas eram proprietários da terra que nós invadimos e tomamos. Acho sempre bom lembrar disso. Segundo, o Brasil tem uma rede de atendimento a essa população que visa respeitar seus costumes, só que em Curitiba parte dessa rede foi desmontada, entre elas a casa de passagem que os abrigava. Terceiro, indígenas têm o direito de viver do próprio trabalho, assim como eu e você. Como as reservas foram delimitadas em regiões distantes de centros urbanos, a eles resta vir até aqui para comercializar o que produzem. Por fim, a política da FAS de separar famílias é inadequada não só para indígenas, mas para qualquer pessoa. Qualquer um de nós que se veja numa circunstância que exija atendimento da assistência social deveria ser tratado com respeito e poder se manter ao lado de seus familiares. Espero ter te esclarecido. Abraço, Rosiane

  5. A FAS não deve ser responsabilizada sozinha por indígenas que Não são moradores de Curitiba. A FUNAI deveria se responsabilizar. Por que a casa do Indígena fechou? O desmonte que vemos há anos, principalmente nesse “des”governo federal quanto às questões ambientais e indígenas só agrava a situação. Em primeiro lugar deve-se perguntar: Como os indígenas estão vindo a Curitiba? Quem está trazendo ou financiando o transporte? Como sempre acontece, cidades pagam passagens para se “livrarem” do “problema”. O que precisa ser feito é um projeto de sustentabilidade aos povos em seu local de moradia. Falta vontade para isso. Quanto a Curitiba, poderiam sim ter um projeto de acolhimento especializado mas em conjunto com a FUNAI e Governo do Estado pois sozinha a FAS não tem muito o que fazer.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Jaqueline, o atendimento aos indígenas é do município em Curitiba. Era a FAS que gerenciava a Casa de Passagem Indígena, que foi fechada no início da pandemia. Rosiane

  6. O que eu vejo são pessoas explorando o trabalho infantil. Ficam mendigando nos semáforos com várias criancas. Não importa quem são, importa qoe estão explorando as crianças é isso é crime em qualquer lugar do mundo….sociedade podre defende essa exploração das crianças

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Roger, o trabalho das indígenas é o artesanato dela. Que é vendido nas rodovias e em idas as cidades. Elas estão aqui trabalhando para garantir o sustento da família, mas como são mães, trabalham com as crianças pq não há outra alternativa. O que você sugere? Que não trabalhem? Que deixem as crianças sozinhas?
      Obrigada pela audiência

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Oi Regina, olha, elas não estão pedindo esmola, estão vendendo o que produzem. Como não há como vender esses produtos na aldeia, elas vêm para cá fazer isso e com isso garantir o sustento da família. Obrigada pela audiência

  7. SONIA REGINA HOFFMANN

    Um absurdo o destrato e desumanização com os indígenas por parte da administração do Sr. Rafael Waldomiro Greca de Macedo. Quando vai ser reaberta a Casa de Passagem, que dava um mínimo de dignidade aos nossos povos originários que vinham a Curitiba vender seus artesanatos para tentar sobreviver.? Hoje até isso lhes é negado e o que oferecem? Vagas nas dependências do FAS, separando as mães dos filhos o que, para uma mãe indígena, é mais absurdo do que para uma mãe branca, tendo em vista que sempre levam seus filhos para onde vão. Total falta de sensibilidade com a cultura indígena, total desrespeito com quem tanto faz por nós, cuidando de nossas florestas e preservando nossos rios. #CasadePassagemjá

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