Mateus saiu para comemorar a carteira de motorista e morreu baleado em ação da Guarda Municipal

Mateus Noga tinha 22 anos e morreu na noite do último sábado, no Hospital do Trabalhador

Era sábado à noite quando Mateus Silva Noga, de 22 anos, Deivison Novaski e outro amigo saíram para comemorar o novo motorista do grupo: Mateus havia recém tirado a habilitação. O local escolhido para a celebração foi o Largo da Ordem, no centro histórico de Curitiba.

Perto das 22h20, os amigos, que estavam sentados no chafariz do Cavalo Babão, levantaram-se para buscar a última rodada de cervejas quando viram uma viatura da Guarda Municipal de Curitiba (GM) estacionar na Rua Trajano Reis. Dela desceram dois policiais com cassetetes em mãos e logo a multidão de pessoas que circulavam pelo local começou a se dispersar.

“A gente já se tocou que era para sair, assim como sempre acontece ali. A gente já conhece, sabe que a polícia normalmente chega ali e a galera já dispersa”, relata Deivison. 

Poucos minutos depois, os amigos escutaram o primeiro tiro. Por trás dos ombros, Deivison avistou outros dois guardas saindo da viatura. Estes, no entanto, carregavam armas de calibre 12mm. O segundo estrondo não demorou para ocorrer. O grupo continuou se afastando do chafariz, correndo em direção à Rua Dr. Claudino dos Santos, até que Mateus parou em frente à balada Verdant, que fica ao lado do Solar do Rosário.

“Ele levou o tiro ali, atravessou a rua, desceu até a Verdant, se abaixou e colocou a mão na barriga. Eu perguntei para ele brincando ‘levou um tiro cara?’ e ele balançou a cabeça que sim”, conta Deivison, que no início pensou serem balas de borracha.

Tentando se equilibrar para ficar em pé, Mateus caiu de bruços, quebrando os dentes da frente na queda. “Foi ali que eu vi que as costas dele estava toda alvejada, cheia de sangue. Quando levantamos a blusa dele estava toda picotada já, tinha oito perfurações.”

Inconsciente, Mateus foi levado pelos amigos para o canto da rua. Quando recobrou a consciência por um instante, disse que sentia muita dor, que não conseguia respirar e que a bala tinha acertado sua coluna. “Ele estava sofrendo bastante, agonizando, estava saindo muito sangue. Então a guarda chegou, trataram ele com uma falta de respeito das maiores. O guarda bateu na cara dele, com a boca o nariz sangrando, desanimado e a polícia militar batendo na cara dele como se não fosse nada”, relata Deivison que conta nunca ter visto tantas viaturas em um mesmo lugar.

Eram 23h30 quando Mateus foi levado ao Hospital do Trabalhador para ser atendido. Deivison, que não pôde acompanhar o amigo, conseguiu chegar no local só uma hora e meia depois. “Não deixaram eu ir nem na ambulância nem na viatura. Chegando lá a gente perguntava do Mateus e não sabiam dizer nem se ele tinha ido para a sala de cirurgia.”

Às 4h30 da manhã veio a notícia de que Mateus estava morto. “Nunca imaginei que ele iria morrer. Achei que iria melhorar. O choque veio mesmo quando eu vi todo o aquele sangue. Mateus era uma pessoa muito fiel, leal, um amigo que sempre esteve do meu lado. A gente passou muita coisa junto já, era um irmão para mim. A gente nunca espera perder alguém, ainda mais de uma forma tão trágica assim, de graça.”

Segundo Deivison, ele e os amigos não tinham qualquer envolvimento com a confusão que fez com que a GM fosse acionada. “Nada justifica a ação deles [Guarda Municipal] de forma alguma. Lá não tinha ameaça nenhuma, eram só jovens. Não tinha motivo para usar arma de fogo. Nada vai recuperar a vida do Mateus. Foi um erro fatal”, critica Deivison.

Deivison e Mateus. Foto: Reprodução/Facebook

No lugar errado, na hora errada

Quem também estava no Largo da Ordem naquele sábado era o tio de Mateus, Nivaldo Noga. A uns 10 metros do sobrinho, Nivaldo estava com os amigos próximo à Igreja do Rosário. Ele, no entanto, não tinha conhecimento da presença do sobrinho no local.

“Eu estava nesse ponto da calçada quando passou por mim um casal tendo um desajuste verbal, eles discutiam com um tom de voz elevado. As coisas aconteceram muito rápido. Logo depois eles começaram a brigar fisicamente, com empurrões. Outras pessoas que estavam próximas se juntaram tentando apartar, puxar um, puxar outro, tentando intervir de alguma maneira para evitar uma situação maior”, conta Nivaldo.

Naquele momento, passava uma viatura da Guarda Municipal que presenciou o tumulto. “Dois policiais que estavam do lado esquerdo do veículo desceram com cassetetes na mão. De forma automática e voluntária as pessoas que estavam ali começaram a se dispersar, inclusive eu. Como imaginei que poderia ter uma situação mais complicada eu já procurei me afastar subindo em direção à Ruína de São Francisco.”

Depois de andar cerca de 15 metros, Nivaldo escutou o primeiro estampido e logo em seguida o segundo. “Tudo isso foi questão de segundos. De longe, me deu a impressão de se tratar de balas de borracha, talvez para agilizar a dispersão, parar aquele pequeno tumulto.”

Logo depois, Nivaldo viu que a viatura tomava direção do Solar do Rosário e que outra menor surgiu, descendo pela Alameda Dr. Muricy, em direção ao Memorial de Curitiba. Ele então decidiu ir para casa. 

Às 4h da manhã, o homem foi acordado por uma ligação do Hospital do Trabalhador o informando que seu sobrinho tinha sido alvejado pela GM e estava em estado gravíssimo com várias perfurações no corpo, todas nas costas. “O corpo do Mateus tinha nove perfurações. A camiseta e a jaqueta que ele usava apresentam todos os furos. É possível ver 10 furos na jaqueta e nove na camiseta porque uma deu no braço e a camiseta era de manga curta. Três das perfurações atravessaram o corpo do Mateus, entraram pelas costas e saíram pelo peito. Uma delas, segundo a médica do HT, perfurou o coração”, relata o tio.

Além do coração, Nivaldo conta que Mateus teve rins, fígado, baço, intestino e pulmões perfurados. “Eu indiquei ao hospital o contato com o pai dele, mas quando ligaram para meu irmão já falaram que o Mateus tinha morrido.”

“O que aconteceu no sábado trata-se de uma tragédia muito grande, um erro inexplicável porque penso eu que em momento algum poderia ser usada uma arma letal, em hipótese alguma. O Mateus estava no lugar errado, na hora errada. Existe uma infinidade muito grande de meios e condições de conter tumultos e dispersar pessoas sem o uso de arma letal, sem matar ninguém e destruir famílias.”

Para Nivaldo, que fala em nome da família de Mateus, é preciso que as autoridades e os governantes da cidade prestem atenção na tragédia que aconteceu. “A gente espera a verdade e providências para que nenhuma outra pessoa possa ser tirada do mundo dessa forma. Nada vai trazer o Mateus de volta, mas talvez a morte dele evite outras tragédias como essa.”

O velório de Mateus ocorreu na tarde desta segunda-feira (13), na Capela Paroquial Colônia Orleans. Mateus deixou o filho, João Gabriel, de apenas nove meses. 

A versão da Guarda Municipal

Procurada pela reportagem, a Guarda Municipal informou que foi acionada para atender uma briga envolvendo diversas pessoas, No local haveria mais de 300 pessoas e boa parte delas estaria consumindo bebidas alcóolicas, aglomeradas e sem máscaras.

Conforme a GM, ao chegarem, os policiais foram atingidos por garrafas de vidro e então reagiram. A prefeitura não informa se foram os guardas que dispararam os tiros.

Além de Mateus, uma adolescente de 14 anos e uma mulher de 31 anos foram atingidas pelos disparos. A Guarda Municipal chamou o Siate. O rapaz não resistiu e morreu recebendo atendimento. As duas mulheres foram socorridas.

Em nota, a GM afirmou que a Corregedoria da corporação já abriu uma investigação para apurar fatos e circunstâncias e em coletiva nesta segunda-feira (13), o comandante da GM, Carlos Santos Júnior, informou o afastamento do oficial que teria disparado os tiros.

O caso também está sendo investigado pelo Ministério Público do Paraná e pela Polícia Civil.

Leia a nota da GM na íntegra

“A Guarda Municipal de Curitiba lamenta o falecimento de um jovem de 22 anos ferido por arma de fogo após uma confusão generalizada registrada na Rua Trajano Reis, no fim da noite deste sábado (11/9).

Uma equipe da GM foi acionada para conter uma briga envolvendo diversas pessoas na Trajano Reis. De acordo com relato dos guardas que atenderam a ocorrência, no local estavam aproximadamente 300 pessoas, grande parte consumindo bebida alcoólica e sem respeito ao distanciamento e ao uso de máscara. Ao chegar ao local, várias garrafas de vidro foram arremessadas contra os profissionais, que reagiram à injusta agressão.

Outras duas pessoas ficaram feridas: uma adolescente de 14 anos e uma mulher de 31. Os guardas prestaram socorro e acionaram o Siate.

Tão logo teve conhecimento do ocorrido, a Corregedoria da Guarda Municipal deu início à investigação para apurar fatos e responsabilidades. O procedimento vai apurar eventuais irregularidades, com as devidas providências previstas em regimento interno da corporação  e demais legislações inerentes à matéria. A sindicância administrativa tem prazo legal estabelecido de 15 dias, prorrogáveis por mais 15. No entanto, a Corregedoria pretende terminar a sindicância o mais rápido possível, a depender do recebimento de documentos essenciais, como o laudo do Instituto Médico-Legal (IML), para o esclarecimento integral dos fatos.”

Reportagem sob orientação de João Frey

Sobre o/a autor/a

11 comentários em “Mateus saiu para comemorar a carteira de motorista e morreu baleado em ação da Guarda Municipal”

  1. Meus sentimentos a família do jovem.
    Aconteceu algo parecido comigo em fevereiro de 2018 no (xaxim), eu e mais 4 amigos numa quadra PÚBLICA estávamos andando de skate e um “guarda municipal” GM chegou no seu veículo particular “mas de farda” e nos abordou a disparo de calibre 38 sem nenhum motivo.
    Por sorte não machucou ninguém gravemente , só um disparo acertou um dos meus amigos (um tiro de raspão no pé). Poderia ter acontecido o pior mas ainda bem que nao!
    Resumo disso tudo é que a GUARDA MUNICIPAL nao tem preparo nem pra andar com cassetete quem dirá com armas de fogo!?

  2. Inacreditável o uso de munição letal contra civis desarmados indo na direção contrária das viaturas. Imensa é a covardia desses policiais que demonstram o despreparo e o intuito da instituição e do governo municipal. Já não basta lidarmos com a truculência da PM, agora temos mais uma brigada de imbecis despreparados com armas de fogo nas mãos. Fuzis e escopetas de alto calibre são armas pra matar, a GM NÃO deveria ter acesso a esse tipo de armamento, visto sua função social. Show de falta de noção pra quem serve essas coisas pra uma polícia que lida com civis.

  3. Isso não foi uma tragédia. Trata-se de imprudência, negligência e imperícia por parte dos agentes da Guarda Municipal(GM) em desvio de função, pois a GM não é polícia ostensiva. Deveria, conforme a Lei ter uma função civil e patrimonial na defesa dos bens do Município. Infelizmente, os prefeitos desvirtuam as suas funções para fazerem politicagem, enquanto contratam segurança privada para as funções patrimoniais. O resultado é o despreparo numa atividade alheia as suas funções institucionais e a responsabilização do ente público na esfera administrativa. Lamento pela família do jovem.

  4. Incrível e inacreditável. Senhor Prefeito Rafael Greca de Macedo, isto não poderia ter acontecido. Medidas enérgicas tem que ser tomadas, os curitibanos exigem isto.

  5. “É possível ver 10 furos na jaqueta e nove na camiseta porque uma deu no braço e a camiseta era de manga curta. Três das perfurações atravessaram o corpo do Mateus, entraram pelas costas e saíram pelo peito. Uma delas, segundo a médica do HT, perfurou o coração”, relata o tio.”

    Tiro de 12 pelas costas, parabéns GM pela valentia!!!!

    Tem que mandar fazer um monumento no local em memória desse rapaz, para que esse ato covarde nunca seja esquecido.

  6. Usar arma com munição letal para conter um tumulto? Quanta irresponsabilidade! Violência desproporcional e polícia despreparada só poderia resultar em tragédia.

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