Katherine, a catadora que virou a rainha da periferia

Com vídeos que são assistidos por milhões nas redes sociais, Katy se transformou em um fenômeno

Quando vê o carrinho rosa da catadora de papel passar, a moça da farmácia sai correndo de trás do balcão. “Katy! Katy!”, ela grita, até ser ouvida, já perto da esquina. Sorrindo, como costuma fazer em situações do gênero, Katherine para de empurrar o carrinho e espera a outra chegar. As duas conversam um pouco e logo fica claro o objetivo: a farmacêutica quer que Katherine faça um publieditorial para ela.

Quando Katherine se despede da moça e volta para onde estamos, com seu elegante conjunto cor de vinho e um colar da sorte, de pérolas falsas (tudo achado nas lixeiras alheias) pergunto qual foi a resposta. “Disse que converso mais tarde com ela pelo Instagram”, Katherine diz, já voltando a puxar o carrinho que a essa altura pesa certamente mais de 100 quilos.

Estamos voltando de um condomínio no Osternack, onde duas vezes por semana Katherine busca material reciclável. É o condomínio Buriti, formado por oito torres absolutamente iguais a milhares de outras da região. Prédios baixos, simples, sem nenhum ornamento, em que quatro famílias vivem por andar.

O trajeto para ir ao Buriti partindo da Associação Mutirão, onde o material é separado e prensado e onde Katy estaciona todos os dias seu carrinho pink, leva pouco mais de dez minutos. O maior desafio é atravessar uma passarela estreita demais para que os carros ultrapassem Katherine. Nesse trecho pequeno (uns 50 metros), ela corre – às vezes saltita – para chegar ao outro lado inteira.

Saindo para trabalhar com o carrinho pink ainda vazio. Foto: Tami Taketani/Plural

Ao longo do percurso, as pessoas não param de abordar Katherine. Uma moça pede que ela grave uma mensagem em vídeo, mandando um beijo para alguém. Um motorista freia ao lado dela para pedir alguma ajuda. O ruído do trânsito não deixa que ela entenda bem, mas Katherine responde com um simpático “Tá bom, beleza”, e segue em frente pela rotatória, logo ouvindo mais uma buzina seguida por um gesto de incentivo e admiração.

Katherine é um fenômeno nas redes sociais. A população da periferia ama os vídeos dela sobre reciclagem. Os carrinheiros se sentem representados. E o comércio começa a descobrir que uma palavra dela para os 335 mil seguidores de Instagram e os 725 mil do Tik Tok vale ouro.

Nem sempre, porém, a vida foi assim.

Ratos, rins e pão dormido

Sandra estava grávida, barriga de quase seis meses. Foi visitar a mãe no Parolin e, enquanto mexia no tanque, foi mordida no pé por um rato. Diz ela que nem deu bola: só limpou o local e seguiu fazendo suas coisas. Dias depois, começou a ficar amarela.

“O médico achou que era hepatite e me mandou pra casa. Só que não era. E uma hora eu apaguei”, conta Sandra, hoje presidente da Associação Mutirão, que cuida de um barracão de recicláveis montado pelo BNDES no Bairro Novo.

Sandra acordou num hospital, sem um rim e com um bebê que já tinha nascido três meses antes. “Fiquei mais de três meses em coma. Era leptospirose o que eu tinha”, diz ela. Aquela era a sua quarta gravidez. Na quinta, nasceria Katherine.

A vida complicou ainda mais. Sem um rim, dependendo de hemodiálise, com cinco crianças, Sandra não conseguia emprego. Morava com o irmão num mesmo terreno: ele também não tinha trabalho e as crianças (sete, somando as duas famílias) passavam fome.

Associação Mutirão: carrinheiros reciclam cinco toneladas só de garrafas pet por mês. Foto: Tami Taketani/Plural

“Eu sempre via os catadores, mas nunca pensei em fazer aquilo. Só que não tinha mais saída. Meu irmão montou um carrinho com duas rodas de bicicleta e resolvemos fazer um teste, coletando no Boqueirão”, conta ela.

Foi o que salvou a criançada da desnutrição.

“No primeiro dia, uma mulher me perguntou se eu tinha cachorro e me deu pão. Na cabeça dela, aquilo só ia servir mesmo pra bicho, de tão duro” Sandra pendurou ao lado do carrinho. “Quando cheguei em casa, as crianças avançaram no pão, parecia a melhor comida do mundo. Nesse dia, me enfiei no banheiro e chorei.”

Sandra decidiu que ia continuar com o carrinho, se esse era o jeito de garantir a comida dos filhos e dela mesma.

Influencer cor-de-rosa

No EcoCidadão, cada catador tem a sua mesa, onde separa os materiais. A grande vantagem de estar na associação é que não há necessidade de ficar correndo atrás de todo o material. Todos os dias, o caminhão do Lixo que Não É Lixo vai até lá e despeja toneladas de recicláveis.

Os condomínios são uma espécie de seguro. “Às vezes o Separe aplica alguma punição na gente, dizendo que tinha alguma irregularidade no barracão. Chegam a deixar a gente 30 dias sem material. Já imaginou 30 dias passando necessidade? Eu não, prefiro manter meus condomínios”, diz Katherine.

Reciclável é o que não falta no imenso galpão. No dia em que a fotorrepórter Tami Taketani e eu fomos visitar, era começo de mês, e já havia bags lotados de plásticos, alumínio, vidro e principalmente garrafas pet (a garrafa pet é responsável pela maior parte da receita da Associação, pagando cerca de R$ 5 por quilo. São separadas ali quase cinco toneladas do material a cada mês).

No fim do mês, mesmo com a maior parte do material já prensado, mal sobra espaço para andar ali. Na época do Natal e da Páscoa, dizem que é impossível se mover por ali sem pisar em recicláveis de todo tipo, por mais que tudo esteja organizado dentro do que é humanamente possível.

A mesa de Katherine só tem uma diferença em relação às outras: um pedestal com luz e lugar para prender o celular. Ela começa a filmar assim que inicia a separação dos materiais. Joga as garrafas num bag (um imenso saco resistente), o metal em outro, e vai conversando com os seguidores.

“Demoro mais que os outros para terminar, porque a live consome tempo”, sorri ela. Depois, é só cortar os melhores trechos e jogar no Tik Tok e no Insta. O sucesso é garantido, com vídeos que passam muitas vezes das cinco milhões de visualizações.

Os vídeos falam basicamente sobre reciclagem. Sobre aquilo que Katherine encontra nos sacos de lixo. E é realmente impressionante. Só na visita ao Buriti naquele dia havia duas jaquetas de motoqueiro em perfeito estado. Por essas e outras, Katy diz que nunca mais compra roupas: tudo que ela veste vem do lixo.

As infinitas torres de condomínios no Sítio Cercado fornecem material reciclável para os catadores. Foto: Tami Taketani/Plural

A própria casa (que ela não mostra porque desde a celebridade começou a aparecer todo tipo de gente por lá) foi montada com coisas postas para descarte. Às vezes aparecem coisas realmente inusitadas, como uma banheira ou um Fusca quase inteiro. Só cartela da Mega com todos os números anotados ainda não apareceu.

Nos vídeos, Katy diz qual roupa vai usar na festa, o que vai fazer com aquele par de sapatos e às vezes pergunta para os seguidores o que será aquele objeto estranho que surgiu na mesa de separação (será um cesto de roupa suja? Um brinquedo?)

Papel e moeda

A ideia dos vídeos sobre reciclagem veio da mãe. Katy dizia que queria fazer postagens sobre sua rotina, mas Sandra insistia com a filha que o pessoal ia gostar mais de vídeos de reciclagem. Como tantas vezes acontece, as mães têm razão. Os vídeos sobre a rotina ninguém via. Logo no primeiro sobre reciclagem, Katy bateu um milhão de visualizações.

“No primeiro mês que eu estourei, o Tik Tok me pagou R$ 7 mil em monetização. Achei que eu ia ficar rica, comprar minha Amarok”, ela brinca. Em poucos meses, porém, o aplicativo começou a desmonetizar os vídeos alegando a existência de conteúdo potencialmente perigoso, já que Katy acaba encontrando coisas como caco de vidro e agulhas. Mesmo depois de eliminar isso na edição, a monetização minguou.

Agora, o caminho para ganhar dinheiro com o seu perfil, o Papel e Moeda, talvez sejam os publis – vídeos pagos para falar de algum produto ou causa. O primeiro contrato leva Katy para todo lado do Paraná, falando justamente sobre reciclagem, e garante uma graninha por mês – nada perto do que o Tik Tok deveria pagar, mas ajuda.

Se o dinheiro dos vídeos minguou, a fama, por outro lado, só cresceu. Alguém na Record nacional viu os vídeos de Katherine e ela foi parar num quadro do programa de Rodrigo Faro (embora o sonho dela seja conhecer Eliana). Foi objeto de reportagens e, em abril, acabou escolhida na primeira edição do prêmio “Melhor de Curitiba”, promovido pelo Plural, como melhor Profissional de Serviço da cidade.

Katherine sobe ao palco para receber o prêmio “Melhor de Curitiba”. Foto: Isa Lanave/Plural

Antes de subir ao palco do Teatro da Reitoria para receber a homenagem, Katy procurou o salão onde faz os cílios para ocasiões especiais. O cabelo com as longas tranças, que ela chama de seu “superpoder”, é a mãe quem ajeita. Num vídeo, ainda como finalista, disse que Deus diria se ela devia continuar com o trabalho de influencer. Se ganhasse, seguiria em frente. Caso contrário, era uma mensagem de que essa vida não é para ela.

Não só ganhou como, ao falar a primeira frase no palco (“Sou catadora de recicláveis”), viu a plateia inteira de 700 pessoas na Reitoria se levantar para aplaudir.

Mistério

Sobre sua vida, Katy só faz mistério com duas coisas. A primeira é a casa, também no Bairro Novo. “Tenho duas meninas pequenas, e de repente começa a aparecer muita gente”, diz ela. A filha mais velha, de seis anos, aliás, nem gosta muito da fama da mãe. A mais nova, de três, ainda não entende muita coisa.

O outro mistério é sobre o nome. Katherine Fontinelly Bittencourt é um pseudônimo, e ela não diz de jeito nenhum qual é o nome que os pais lhe deram. “Katherine era uma personagem do ‘Diário de um Vampiro’; Bittencourt era uma atriz que eu gostava; e o Fontinelly na verdade eu nem lembro de onde tirei”, diz ela sorridente.

Katy diz que prometeu aos fãs contar seu nome quando chegar a um milhão de seguidores, mas por enquanto isso ainda não aconteceu.

Um terceiro mistério é sobre um possível relacionamento romântico. Durante uma única manhã, ela é capaz de mencionar o nome de um certo amigo uma dezena de vezes. Faz vídeos com ele. Mas jura que é tudo amizade. “Né, mãe, que ele é só meu amigo?”, ela pergunta rindo. “Claro”, responde Sandra. “Meu marido também era meu amigo”, ri a mãe da celebridade.

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