Indígenas e quilombolas questionam barragens que interrompem rios e modos de vida

Comunidades têm subsistência e cultura ligadas à terra e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

No norte do Paraná, na região sul do Brasil, a comunidade indígena guarani Verá Tupã ’i teme pelo futuro da aldeia. Cerca de 20 indígenas vivem na zona de influência de uma Central Geradora Hidrelétrica, ainda em construção no rio Mourão, no município de Campo Mourão.

No Brasil, esta é uma usina considerada de menor porte, com potencial de geração de até 5 MW (megawatts), com menos exigências legais para estudos de impactos socioambientais que outras usinas. Mesmo causando impactos menores, estudos apontam para efeitos expressivos destas instalações.

“Nossa água e nosso alimento estão ameaçados”, atenta a liderança indígena Jaxy Rendy. Ela conta que sua comunidade depende do ecossistema em equilíbrio na região da pequena aldeia, que já é cercada por plantações de soja.

Indígenas Guarani lutam para evitar mais uma barragem do rio Mourão. Comunidade depende do ecossistema fluvial sem alterações para manter modo de vida. Foto: Jaxy Rendy

A liberação de usinas de pequeno e médio porte faz parte do Plano Decenal de Energia 2031 do Brasil, que mira a transição energética brasileira a partir de fontes mais diversificadas de geração, como a eólica, o biocombustível e a hidráulica.

No Brasil, um terço da matriz energética vem de derivados do petróleo. A energia hidráulica, aquela produzida pela força das águas, é responsável por 12,6% da geração no país. As regiões Sul e Sudeste concentram o maior número de usinas hidrelétricas, sendo o Paraná, onde fica o rio Mourão, o sexto estado com mais usinas.

Sistema da Agência Nacional de Energia Elétrica do Brasil mostra concentração de usinas hidrelétricas nas regiões Sul e Sudeste do país, onde estão os estados de São Paulo e Paraná. Fonte: Aneel

Em territórios coletivos e com modo de vida único e ligado à terra, famílias quilombolas também se vêem pressionadas por novas usinas. No Brasil, os quilombos são áreas de resistência das populações negras, cujos ascendentes foram escravizados por mais de 300 anos. Seus territórios são considerados tradicionais e protegidos pelo artigo 68 da Constituição Federal

A cerca de 600 quilômetros da nova usina do rio Mourão, as futuras obras da Pequena Central Hidrelétrica Itaoca são a maior preocupação de 10 comunidades quilombolas na região do Vale do Ribeira, no estado de São Paulo. Segundo a CETESB, o estado liberou 11 licenças de instalação para usinas hidrelétricas nos últimos 10 anos, estando três pedidos atualmente em análise. 

Famílias quilombolas atravessam de barco o rio Ribeira do Iguape, onde a empresa MSul Energia pretende construir usina hidrelétrica. Foto: EAACONE

Carla Galvão, quilombola da Comunidade João Surá, no Vale do Ribeira (SP), explica que os protocolos de consulta e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) não são respeitados pelos empreendedores.

“Nunca somos consultados. Aqui no Vale do Ribeira comunidades inteiras já foram expulsas de seus territórios e tiveram que arrumar outro lugar para morar, vivendo de forma precária, porque as empresas alagam as áreas de moradia”, critica Galvão.

Famílias quilombolas atravessam de barco o rio Ribeira do Iguape, onde a empresa MSul Energia pretende construir usina hidrelétrica. Foto: EAACONE

Para aprovar empreendimentos, a legislação brasileira prevê a realização de audiências públicas. Obrigatoriamente, por ser signatário da Convenção 169 da OIT, o país deve ouvir populações indígenas e tradicionais. Segundo as comunidades consultadas para esta reportagem, não é o que tem ocorrido.

Usinas e as Mudanças Climáticas

A central geradora hidrelétrica Saltinho/Maria Cavaleira, no rio Mourão (PR), começou a ser instalada em maio deste ano pela empresa Saltinho Energias Renováveis S.A. num trecho de 17 quilômetros onde já existem outras duas usinas.

Moradores contam que uma usina instalada no mesmo rio há alguns anos fez secar a água do Salto Santa Rita. “Bebemos a água do rio, pescamos, é onde as crianças brincam. A gente precisa da mata, dos animais, o equilíbrio que tem ali depende do rio. A usina vai alterar esse equilíbrio”, pontua Rendy.

Indígenas Guarani. Foto: Jaxy Rendy

Por ser considerada renovável, a energia hidráulica parece inofensiva. Mas segundo a geógrafa Maristela Mezzomo, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, mesmo as usinas pequenas provocam “enorme impacto ambiental” onde são instaladas. “Ocorre a diminuição de vazão do rio, escassez hídrica, perda de biodiversidade, perda de áreas cultiváveis, entre outros”, afirma Mezzomo. 

Culturas da comunidade Guarani. Foto: Jaxy Rendy

Para interromper as obras da usina no rio Mourão, o Ministério Público do Paraná fez uma recomendação ao órgão licenciador pedindo a suspensão imediata da licença de instalação da obra, depois de considerar um estudo que afirma faltarem análises ambientais locais por parte da empresa. 

Segundo o documento, “não é apresentada [pela empresa] nenhuma informação da fauna de espécies de peixes específica do rio Mourão”. O estudo ainda aponta que a fragmentação do rio por barreiras físicas influencia o processo reprodutivo de espécies fluviais, sendo “um dos principais responsáveis pela perda de biodiversidade geral”. 

Em defesa da comunidade Guarani, o Ministério Público Federal (MPF) também interveio. Em um recurso de sentença judicial, o MPF afirmou que “a empresa Saltinho estava ciente da existência da comunidade indígena ali existente e, apesar disso, a ignorou”. 

A aldeia Guarani tem o apoio do movimento social urbano Guardiões da Cachu. “O dano desta obra já foi causado, pelo desrespeito não só à comunidade indígena mas à população rural e da cidade que frequenta este rio como um espaço de lazer”, afirma Alana Bottega Lima, membro do movimento.

A empresa Saltinho Energias Renováveis respondeu à recomendação afirmando que, em 2020, fez duas visitas in loco para levantamento da fauna e que não compete a outra instituição “determinar a forma como os estudos devem ser realizados durante o processo de licenciamento”, exceto ao órgão licenciador. 

A empresa afirmou em nota que cumpriu todos os protocolos de consulta prévia, que dispõe das autorizações legais para construção da usina e que não há necessidade de estudos complementares da questão indígena, conforme sentença judicial (leia nota na íntegra aqui).

Último médio rio de São Paulo sem barragens

As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, na divisa entre os estados de São Paulo e Paraná, já lutam há décadas contra a instalação de barragens. 

O único rio de São Paulo considerado de médio porte sem barragens é o Ribeira do Iguape, mas não por falta de pedidos de empreendedores. A MSul Energias Renováveis é a empresa que busca viabilizar uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) entre os municípios de Adrianópolis (PR) e Itaoca (SP).

Rio Ribeira do Iguape, que corta a região do Vale do Ribeira, no sudeste de São Paulo (Brasil), é o último rio de médio porte sem barragens no estado. Foto: Oscar Papke

Em fevereiro de 2020, a Agência Nacional de Energia Elétrica permitiu a revisão dos Estudos de Inventário Hidrelétrico do Ribeira do Iguape. Em 2021, a Eletro Energias Renováveis Ltda, sócia da MSul, assumiu os registros. No mesmo rio, a empresa ainda pretende instalar a PCH Sete Barras

No vídeo de divulgação da PCH, a empresa menciona duas vezes as comunidades quilombolas com os termos “Segurança, empregos e preservação dos quilombolas”. A quilombola Carla Galvão afirma, ao contrário, que as barragens trazem impactos negativos até anos após a conclusão da obra. 

“É uma ilusão dizer que barragens trazem empregos para as comunidades. No começo tem um boom, mas ao longo do tempo só fica o corpo técnico da empresa, que é de fora”, afirma Galvão.  

Segundo ela, situações de racismo e violência aumentam e a atenção pública às comunidades diminui. “Quando uma barragem é instalada, quem manda no orçamento dos municípios é a grande empresa; as prefeituras não atendem mais às comunidades, mas aos interesses das empresas”.

Imagens da PCH Itaoca pela empresa MSul Energia. No Brasil, PCHs podem ter capacidade de geração de energia de até 30 MW. Imagem: MSul Energia

Em 22 de junho deste ano, uma audiência pública reuniu moradores da região, além do Ministério Público, pesquisadores e a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE). Foram discutidos os impactos das usinas e estratégias comunitárias para evitar que o rio Ribeira do Iguape deixe de ser uma livre corredeira. 

Comunidades do Vale do Ribeira se reunem para discutir estratégias de proteção do rio Ribeira do Iguape e afluentes. Foto: Letícia Ester/EAACONE

O Climate Tracker tentou contato com a MSul Energias Renováveis, que não respondeu aos questionamentos sobre possíveis irregularidades no processo de licenciamento.

Transição energética justa, para quem?

O benefício da geração de energia nem sempre alcança a comunidade atingida pela instalação da usina. Segundo o promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná, Robertson de Azevedo, há comunidades perto de pequenas centrais hidrelétricas que não têm iluminação pública. “A energia vai para um sistema integrado nacional, ou para uma indústria local, mas não para as pessoas que moram perto da usina”, afirma Azevedo. 

Imagens da PCH Itaoca. Imagem: MSul Energia

Além do avanço de outros modais de energia, como a eólica e os biocombustíveis, a transição energética brasileira passa pelas centenas de pedidos de liberação de usinas hidrelétricas. ao mesmo tempo, o país vive com os impactos das barragens em diversas regiões, como registra o Movimento dos Atingidos por Barragens

“Em termos de uma transição energética justa, a fonte renovável ideal será aquela em que a sociedade civil também participe da tomada de decisão sobre qual modelo é o que causa menos impactos ambientais e sociais, bem como que tipo de benefícios socioeconômicos terá”, afirma Mezzomo.

Este texto foi produzido com apoio do Climate Tracker América Latina

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1 comentário em “Indígenas e quilombolas questionam barragens que interrompem rios e modos de vida”

  1. Isso não faz sentido. A vazão sanitária é requisito para qualquer usina hidrelétrica. O rio continua fluindo. Toda usina tem que criar APP. Vai ter vegetação ao redor obrigatóriamente, as vezes mais que o atual. Toda usina gera impostos pro municipio poder cuidar melhor das estradas. Toda usina tem vigilância para impedir desmatamento. Não faz sentido a reclamação. Deveria estar implorando para ter usinas de pequeno porte em terras indiginas para ter uma renda passiva, pois por acordo o local impactado pode ter uma % da energia gerada todo mes.. Durante a obra tem muita gente sim. Depois é quase tudo controlado remotamente com um ou dois técnicos por dia.

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