Palco de protesto antirracista, Igreja do Rosário foi construída com o sangue dos escravizados

Conheça a história do templo, no centro de Curitiba, onde eram sepultados os negros

Os últimos dias foram conturbados na Igreja do Rosário, na praça Garibaldi, em Curitiba. Um protesto antirracista, em frente à Igreja dos Pretos virou assunto na Câmara Municipal e desenterrou mágoas sobre o processo de construção do templo e a implantação do próprio catolicismo no Brasil.

“A Igreja Católica é apostólica e universal. Não há, em todo evangelho, nada que remeta a separação por causa de cor de pele”, afirma a professora Ana Beatriz Dias Pinto, especialista em cultura religiosa e titular do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

A Igreja ter sido beneficiada pela escravidão e a conivência tanto do clero quanto dos fiéis vai ao encontro da expressão alemã “Zeitgeist”, que pode ser traduzida como “espírito da época”.

Por luta e mobilizações o espírito muda. Em 1981, por exemplo, Dom Pedro Casaldáliga e outros religiosos incluindo Dom Hélder Câmara realizaram a missa dos Quilombos. “É um marco na relação da Igreja com a comunidade afro-brasileira. Dom Hélder, que é descendente de escravizados, declamou uma linda poesia, “Mariama”, que falava que Deus quer a presença da pessoa negra na Igreja. Foi um momento muito forte”, analisa.

A missa mesclou elementos das religiões de matriz africana e permitiu que os fiéis usassem vestimentas que remetiam ao candomblé e à umbanda, além da utilização dos tambores durante os arranjos musicais, que foram feitos por Milton Nascimento.

A realização da missa dos quilombos estava prevista para Curitiba, mas não aconteceu. Por conta deste caráter multifacetado, houve uma proibição formal da Santa Sé de que a celebração ocorresse novamente. O medo era que os elementos do catolicismo pudessem ser perdidos e fosse iniciada uma outra religião.

Décadas depois, o Centro Cultural Humaitá, de Curitiba, iniciou a lavação das escadas da Igreja do Rosário, trazendo elementos afro-brasileiros a uma celebração que é interreligiosa. “A primeira vez que fizemos houve uma energia, uma conexão com o sagrado, com o divino. Nunca havia acontecido aquilo”, lembra o zelador cultural Adegmar Silva, conhecido como Candieiro.

A Igreja do Rosário não integra uma paróquia, trata-se de um território da Arquidiocese de Curitiba. Por essa razão não há uma comunidade como as demais paróquias, onde os moradores da região que são católicos formam grupos e atuam em conjunto. Assim, não é possível medir quantos frequentadores são brancos e quantos negros, por exemplo. Por outro lado é a única Igreja Católica que abriga um coral negro.

A Rosário recebe fiéis de todos os cantos de Curitiba e até outros estados, de acordo com o administrador. “Gente de todas as etnias. É um espaço aberto a todos, de todas as religiões”, afirma o padre que atua como reitor, Luiz Haas.

História

De acordo com a professora Ana Beatriz, as dimensões continentais do país dificultaram a instalação do catolicismo. “Em 1551 foi instalada a primeira Diocese do Brasil, após uma bula do Papa, que instituiu em Salvador o primeiro bispado”, explica. No entanto, havia dificuldades financeiras e de encontrar número suficientes de padres para que fossem trazidos ao Brasil.

Dessa forma foi adotado o padroado, que é parecido com um “apadrinhamento”, como se Igreja ficasse sob a responsabilidade do rei de Portugal.  “O rei de Portugal tinha obrigação de propagar a fé católica, evangelizar e cuidar de tudo no além-mar”, explica a pesquisadora.

O trabalho forçado indígena e africano ergueu os primeiros templos no novo território português. Em Curitiba a Igreja dos Pretos foi edificada porque, ao passo que os escravocratas cumpriam suas obrigações cristãs na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas (que fica na mesma rua), os negros e negras não podiam participar – embora fossem obrigados a professar a fé católica.

Azulejo português no interior da Igreja do Rosário
Os azulejos que compõem a Via Sacra nas laterais da Igreja são originais | Foto: Tami Taketani/Plural

Karin Willms, coordenadora de Ensino Religioso do Município de Curitiba, explica que os escravizados precisavam levar os senhores até a Igreja, guiando carroças ou carregando essas pessoas. “Durante o tempo da missa dos senhores, os negros ficavam ‘parados’. Então, com a construção da outra Igreja, eles iam para a própria missa”.

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e São Benedito foi construída por escravizados em 1737, no Largo da Ordem. Por questões estruturais o prédio foi demolido em 1931 e reerguido em 1946.

A ornamentação das imagens marca o estilo barroco do templo, que remete aos tempos sombrios da escravatura no Brasil. Nas paredes laterais, do lado interno, a via sacra mantém os azulejos originais da primeira obra.

A Igreja foi erguida graças a mobilização das confrarias, as irmandades de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, compostas em maioria por membros escravizados. Conforme o zelador Candieiro, os mestres de obra e pedreiros africanos que integravam as irmandades se destacavam pelo conhecimento técnico em edificações.

A contradição do cenário, se não causava indignação à época, hoje é criticada por especialistas. “A Igreja foi conivente com a questão das raças. Em frente ao templo, onde fica o ‘cavalo babão’, negros eram açoitados por senhores que sentavam na primeira fila na missa”, diz a professora Ana Beatriz.

Apesar disso, a expressão da devoção dos negros a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito sempre foi marcante, se tornando uma tradição em Curitiba. Sob orientação da professora Joseli Mendonça, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a pesquisadora Pâmela Fabris, do programa de pós-graduação em História, documentou em sua tese o pedido de autorização para realização das congadas (manifestações culturais e religiosas de origem africana).

Em 1877, Bento Martins França, membro da Irmandade de São Benedito, entrou com o pedido “para fazer ensaios do divertimento denominado ‘Congada’ que percorrerá as ruas desta capital durante as festividades de Nossa Senhora do Rosário”. A licença foi concedida, com a condição de que “escravos sem autorização de seus senhores” não fossem admitidos (…)

escreveu a pesquisadora Pâmela Fabrsis, em sua tese.

À parte os benefícios colhidos com a escravatura, a Igreja Católica, por meio do Papa João Paulo II, pediu perdão aos negros e indígenas pelos pecados e conivência com a escravidão somente em 1995.

Santuário das Almas

Há restos mortais sepultados no templo. Entre eles o do Monsenhor Celso Itiberê da Cunha, que atuou como pároco da Igreja até 11 de julho de 1930, ano do falecimento. Ele foi um idealizador da reconstrução da Igreja em cima do cemitério de homens e mulheres escravizados que havia no local onde está o templo atual.

Embora fossem católicos batizados, os escravizados só puderam sepultar seus mortos na Igreja a partir de 1762. “Há muitos escravizados sepultados ali, pessoas que literalmente deram o sangue para a construção daquela Igreja”, explica Candieiro.

Quem passava pela frente do templo chegava ao cemitério – que àquela época era administrado pela Igreja Católica. O fato histórico aliado à sede acima dos restos mortais cunhou o título de “Santuário das Almas” em 1971.

Nos últimos dois anos a pandemia prejudicou o evento da lavagem das escadarias que relembra toda ancestralidade, mas a importância da Igreja do Rosário, embora remeta ao período mais vergonhoso da história do Brasil, é um lembrete da contribuição africana e afro-brasileira para Curitiba.

Apesar dos fatos que motivaram ao protesto – a morte violenta do congolês Moïse Mugenyi, no Rio de Janeiro -, o Zeitgeist desta nossa época é por direitos e respeito. “Todo mundo é chamado ao contato com o sagrado, seja na Igreja, no terreiro ou em qualquer lugar. A boa notícia para a humanidade é que estamos mudando”, conclui a professora Ana Beatriz.

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4 comentários em “Palco de protesto antirracista, Igreja do Rosário foi construída com o sangue dos escravizados”

  1. João Lorival Jacobowski

    O templo primitivo dessa Igreja foi demolido por volta de 1937 e não em 1931. – Há uma foto de 1934 que a mostra a Igreja Presbiteriana sendo
    terminada e a Igreja do Rosário primitiva ainda intacta!

  2. Um absurdo que pessoas pretas não tenham o direito de usar o espaço desta igreja.
    Um absurdo que sejam considerados invasores.
    Um absurdo que tratem esse episódio como uma invasão. Invasão pressupõe um proprietário. E quem é o proprietário desta igreja? Um absurdo completo os desdobramentos desse ocorrido.
    Cassarem um mandato de um representante preto em função de um ato em uma igreja construída por pretos e para pretos.

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