Do que morrem os jovens brasileiros?

Sempre que me lembro do sorriso da minha melhor amiga, penso na sua perda e torço para outras pessoas não precisem sentir a mesma dor

Em memória de Adriana Amorim

Recentemente perdi minha melhor amiga, Adriana Cristina Amorim, de apenas 47 anos. Uma pessoa de amizade fácil, que conversava com todos com quem encontrava. Sua empatia era acima de qualquer medida. Com seus olhos verdes, lia muito bem a alma das pessoas, compreendia de imediato o que dizer, não necessariamente conversas de palavras doces, mas sempre carregadas de verdade e humor.

Preocupava-se sinceramente com a família, amigos, o garçom, o guardador de carros, o entregador da farmácia, a diarista que se tornou grande amiga e a única em quem confiava para arrumar os armários… Como designer, levou para a vida pessoal o lema “menos é mais”, o jeito de se vestir, de viver, com pouquíssimos excessos. O melhor deles, a quantidade gigante de amigos. Aliás nunca vi um velório e um enterro tão lotados…

Fez questão de agradecer a presença de todos, mesmo depois da morte (era uma piada que ela sempre fazia, deixaria o telefone para alguém enviar uma mensagem aos presentes no velório: “obrigada por ter vindo”. E isso realmente aconteceu!)

Ela sofria de duas doenças crônicas, colangite esclorasante e retocolite ulcerativa. Durante a pandemia, o cuidado foi intenso para evitar o contato com o vírus, devido à fragilidade de sua saúde. O isolamento foi quase total, com home office. Nas horas livres, eu ia até o apartamento dela no bairro Bacacheri, em Curitiba. As horas passavam rápido. Conversas leves e divertidas não deixavam entrar o pavor da morte que espreitava do lado de fora.

A vacinação nos permitiu voltar à rotina externa. Mas, um ano depois, seu quadro se agravou afetando gravemente o fígado. Nos seus últimos dias, fez questão de deixar todos os projetos em dia na agência onde trabalhava. Sabia da gravidade e de suas chances em um transplante. “Meu cabelo não segura uma fivela, como meu corpo vai segurar um fígado?”, se perguntava.

Mas ela tinha uma grande vontade de viver e ver a filha crescer. O doador veio muito rápido poucos dias depois dela subir para prioridade na fila: AB+ compatível!

Uma cirurgia de 8 horas. Antes do fim, o corpo já dava sinais de que não aguentaria segurar “essa fivela”.

Partiu dormindo, dois dias depois, com um semblante sereno e cercada de amor. No próprio hospital, conhecia enfermeiras pelo nome. Elas vinham visitar a Adri mesmo fora de suas obrigações, apenas para dar um oi e perguntar como ela estava.

O que dizer de uma amizade dessas? Como expressar a falta que alguém assim pode fazer?

Cada número que está nas estatísticas de mortes jovens no Brasil é uma pessoa, com uma história, uma família e amigos. Cada número que será apresentado a seguir deixou memórias e saudades. Não podemos encarar esses dados com frieza ou indiferença.

Mortalidade entre jovens brasileiros: uma análise dos últimos dez anos

Há poucos dias, um vizinho perdeu uma sobrinha com 50 anos de idade. Foi uma morte rápida, que pegou a família de surpresa e os médicos não identificaram ao certo qual foi a causa. Esse vizinho me abordou no elevador e cogitou que ela morreu devido a efeito colateral da vacina de COVID-19.

Imediatamente lembrei da recente audiência no Senado em que parentes de jovens falecidos por diversas doenças atribuíram esses óbitos, sem qualquer evidência, à vacinação.

Essa hipótese me deixou curiosa. Em que quantidade pessoas jovens morrem de doença? É realmente possível identificar alguma alteração de tendência nessas causas de morte devido à pandemia ou à vacinação?

Ao examinar os dados do portal de transparência ativa do DATASUS, organizei, filtrei e tirei as conclusões do texto.

O panorama preocupante da mortalidade entre os jovens brasileiros mostra mais de 4,5 milhões de óbitos registrados nos últimos dez anos, decorrentes de mais de 1.200 causas diferentes.

Destaca-se que, nos últimos anos, a pandemia de COVID-19 emergiu como uma das principais causas de morte entre pessoas de até 59 anos, impactando significativamente a população.

Apenas nos anos de 2020, 2021 e 2022, a COVID-19 afetou cerca de 210 mil pessoas, sendo responsável por 151 mil óbitos em 2021, tornando-se a maior causa de morte em um único ano. No entanto, graças à vacinação em massa, o número de óbitos despencou para 10 mil em 2022.

É importante ressaltar que a pandemia foi responsável por alterar um patamar quase constante de cerca de 400 mil falecimentos anuais de jovens. Em 2021, o número de óbitos aumentou para 600 mil devido à COVID-19, mas a vacinação conseguiu retornar os números ao patamar anterior já em 2022.

Além da COVID-19, outras causas de falecimento entre os jovens incluem mortes violentas, acidentes de trânsito e suicídio, que representaram 13% dos óbitos, totalizando 571 mil pessoas nos últimos dez anos. Infelizmente, também foram registrados óbitos motivados por diversas doenças, somando aproximadamente 4 milhões de falecimentos no mesmo período. Nem sempre os médicos conseguem chegar a um diagnóstico preciso.

Entre as doenças confirmadas, ataques do coração emergiram como a principal causa de óbito nos últimos dez anos, totalizando 226 mil mortes. Anualmente, cerca de 23 mil pessoas com menos de 60 anos perdem a vida devido a infarto do miocárdio. São 63 mortes por dia no Brasil!

Esses dados refletem não apenas as causas de morte, mas também apontam para a necessidade de medidas preventivas e intervenções eficazes para reduzir a mortalidade entre os jovens brasileiros, seja por meio de políticas de saúde pública, segurança viária ou promoção do bem-estar mental.

Aos antivacinas, aí estão os resultados irrefutáveis da sua eficiência. Minha dúvida é como romper a bolha da ignorância? Como ensinar ciência e democracia para o povo comum em um momento em que teorias conspiratórias antivacina e fake news se espalham em grande velocidade por redes sociais, gerando medo das vacinas e colocando vidas desnecessariamente em risco?

Um exemplo é a vacinação da Dengue disponível para crianças de 10 a 14 anos pelo SUS. A doença avança rapidamente, com mais de 800 mortes confirmadas em 2024. Mas as unidades de saúde estão vazias e os estoques de vacina, cheios. Do público alvo, de 1,2 milhão de pessoas, menos de um terço foi imunizado.


Sempre que sonho com o sorriso da Adri acordo e me deparo com a dolorosa realidade de sua ausência. Como gostaria que, para sua doença, também existisse uma vacina, um escudo protetor contra o avanço implacável da enfermidade que a levou tão cedo.

Vivemos em um tempo onde a ciência nos brinda com a possibilidade de evitar tantas tragédias através da vacinação, um ato de amor próprio e ao próximo.

Não desperdicem essa oportunidade quando estiver ao seu alcance.

Tabela de óbitos de jovens até 59 anos por ano e categoria no Brasil nos últimos 10 anos
Fonte: Portal de transparência DATASUS

Tipo óbito2022202120202019201820172016201520142013TOTAL
X95   Agressao disparo outr arma de fogo ou NE26.32527.99129.71727.01734.95541.81538.96536.65737.79035.342336.574
I21   Infarto agudo do miocardio23.03222.16521.25122.60522.44722.71023.77023.17922.54422.695226.398
B34   Doenc p/virus de localiz NE10.242151.18549.085       210.512
R99   Outr causas mal definidas e NE mortalidade17.76620.74320.88417.70015.00715.54115.68714.26514.18914.723166.505
J18   Pneumonia p/microorg NE9.3347.4697.1199.9348.85810.06912.68911.48011.70912.490101.151
E14   Diabetes mellitus NE8.88510.11110.3008.9659.0189.0129.4269.1959.0709.22493.206
C50   Neopl malig da mama8.4138.0428.0978.1927.9507.7907.6847.3027.0917.01977.580
X99   Agressao objeto cortante ou penetrante6.3206.1576.8396.6267.2128.0688.3418.1618.3788.23674.338
B20   Doenc p/HIV result doenc infecc e parasit6.7956.8866.3636.7057.0707.4928.0958.2498.3078.34174.303
X70   Lesao autoprov intenc enforc estrang sufoc9.7169.0938.1518.0927.2707.2076.4836.3305.9735.81274.127
K70   Doenc alcoolica do figado7.1717.0908.1516.2747.2706.9296.9827.2147.2775.81270.170
C34   Neopl malig dos bronquios e dos pulmoes5.2205.3075.6345.7576.0816.2146.3246.3776.4086.29159.613
I61   Hemorragia intracerebral5.6585.5544.9285.1895.0315.4225.4795.3615.2825.71053.614
V89   Acid veic mot n-mot tipos de veic NE4.3584.6254.3063.7143.4514.1735.8806.0087.4837.12951.127
F10   Transt mentais comport dev uso alcool5.4795.9545.9094.3934.4084.4544.5684.6694.8185.21649.868
I64   Acid vasc cerebr NE como hemorrag isquemico4.3034.4444.4334.0694.0404.4875.1295.0575.2825.53146.775
A41   Outr septicemias5.6655.4054.5924.6473.5354.2334.9794.4384.3314.22946.054
I10   Hipertensao essencial5.3826.0565.8003.9023.8943.9894.0533.8453.7354.02544.681
I50   Insuf cardiaca4.0734.0153.6713.4113.3733.4033.8833.5863.5503.81136.776
C53   Neopl malig do colo do utero4.1303.8673.7803.7373.7003.6683.4283.2933.1063.12935.838
X93   Agressao disparo de arma de fogo de mao4.1793.8373.0022.5854.1623.7743.6803.3873.2083.32635.140
Y34   Fatos ou eventos NE e intenc nao determinada4.4603.3953.7835.3872.9152.7262.9742.8172.5762.81733.850
Outras causas257.375256.338245.041249.542203.785250.342254.979253.591255.141257.3102.483.444
TOTAL444.281585.729470.836418.443375.432433.528443.478434.461437.248438.2184.481.644

“Arranjamos uma sociedade baseada na ciência e na tecnologia, na qual ninguém entende nada sobre ciência e tecnologia. E essa mistura combustível de ignorância e poder, mais cedo ou mais tarde, vai explodir na nossa cara. Quem está gerenciando a ciência e a tecnologia numa democracia se as pessoas não sabem nada sobre ela?

“A ciência é mais do que um corpo de conhecimento, é uma forma de pensar. Uma forma de interrogar o universo com ceticismo e com uma compreensão apurada da falibilidade humana. Se não formos capazes de fazer perguntas céticas, de interrogar aqueles que nos dizem que algo é verdade, de ser céticos em relação às autoridades, então estaremos à disposição do próximo charlatão, político ou religioso, que aparecer.”

Carl Sagan

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Do que morrem os jovens brasileiros?”

  1. Angelo Vinicius Carneiro Gomes

    Que belo texto, necessário!
    Conhecemos tão de perto
    várias histórias assim. É revoltante ver gente q pode se curar continuar vendando os olhos e negando a ciência.

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