Crime de desacato é fruto do autoritarismo e tem uso seletivo no Brasil, dizem juristas

STF restringiu uso do tipo penal, mas mesmo assim há abusos, prisões e questionamentos de órgãos internacionais

No último fim de semana de novembro, uma vereadora de Curitiba foi presa em flagrante pela Polícia Militar do Paraná. Segundo os policiais que fizeram o boletim de ocorrência, a prisão de Maria Letícia (PV) teve dois motivos: um deles, a suspeita de que dirigia embriagada; o outro, o desacato à autoridade policial. De fato, a vereadora foi bastante ríspida com os policiais que a abordaram, mas o fato de o desacato ser incluído como causa da prisão fez mais uma vez lembrar o quanto esse tipo penal vem sendo mal utilizado no Brasil.

“É preciso lembrar que desacato no máximo pode gerar um termo circunstanciado, é caso de juizado especial”, diz a professora Clara Roman Borges, que leciona Direito Penal na UFPR. Portanto, deixar alguém em prisão temporária por desacato, em si só, é um abuso contra o Direito, ainda que você em nenhum momento questione a validade do tipo penal. Mas não são poucos os motivos para questionar a existência mesma do famoso artigo 331 do Código Penal.

“Acredito que nem deveria ser crime”, afirma a professora Roman Borges, explicando em seguida o motivo para isso. “O desacato não é nada mais do que uma injúria, e podia ser resolvido assim. Se a pessoa foi vítima de um comentário maldoso, de um xingamento, tem todo o direito de processar como crime contra a honra.; Por que o funcionário público deveria estar nesse lugar especial de ter uma lei só para si?”, questiona ela.

Os tribunais superiores brasileiros por mais de uma vez estiveram à beira de fazer o que a professora sugere. Na verdade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2016, decidiu que o desacato, da forma como está redigido hoje no Código Penal Brasileiro, era incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). O STJ não tem direito de decretar uma lei inconstitucional, mas tem a prerrogativa de declarar uma lei contrária aos pactos internacionais de que o Brasil é parte – e, portanto, naquele momento, o desacato deixou temporariamente de ser visto como crime.

“O próprio Supremo Tribunal Federal esteve à beira de declarar a inconstitucionalidade do desacato”, afirma o professor Adel El Tasse, mestre e doutor em direito penal e professor em diversas pós-graduações. “Chegou a haver um precedente não qualificado (não julgado pelo pleno), mas aí por pressão de várias organizações, como corporações policiais e Ministério Publico, isso acabou não prevalecendo”, afirma ele.

Contra os “inconvenientes”

O professor afirma que o tipo penal, além de ter uma redação ampla demais, que permite grande subjetividade da autoridade na hora de determinar o que é desacato, é em geral mal utilizado. “O que acontece é que acaba sendo um crime imputado principalmente para as pessoas vistas pelas autoridades como inconvenientes. Vale mais para os mais pobres, para os movimentos sociais, para aqueles que são mais comumente alvo de ações policiais, para os que contestam arbítrios”, afirma.

Ainda que isso mais tarde seja anulado judicialmente, o crime já foi caracterizado, muitas vezes a pessoa foi presa e, além disso, precisa enfrentar o estigma de uma ação penal. “No Brasil, todo mundo quase acaba, um dia, tendo uma ação cível, pedindo uma indenização, algo assim. Mas uma ação penal ainda é uma coisa que marca para sempre a imagem da pessoa”, diz Clara Roman Borges.

Um outro problema, afirma o professor Reinaldo Santos de Almeida, doutor em Direito Criminal pela UERJ, é a seletividade do uso do tipo penal. “Atualmente, na prática forense brasileira, a sua aplicação é seletiva: quando supostamente praticada contra um policial, entende-se que o tipo penal é válido, porém, quando praticada contra um professor, por exemplo, o Ministério Público costuma opinar pela inconstitucionalidade do fato punível”, afirma ele.

Tanto Reinaldo quanto a professora Clara concordam que, na origem, tudo tem a ver com o autoritarismo brasileiro. “A imputação de desacato cresceu no Brasil junto com a Ditadura Militar de 1964, como um meio de manter a ordem social dentro dos padrões que os governantes da época exigiam”, afirma Clara Roman Borges.

“O crime de desacato ainda existe no Brasil por força do autoritarismo”, diz Reinaldo Santos de Almeida. E isso tem repercussões graves para a liberdade de expressão. “O crime de desacato é um obstáculo à plena liberdade de expressão, especialmente em um contexto democrático, pois o delito pode ser usado para silenciar opiniões contrárias ou críticas ao governo, órgãos públicos e seus representantes.”

Fachin x Barroso

A restrição à liberdade de expressão, aliás, foi justamente o motivo da ação da OAB que levou o STJ a declarar o desacato como contrário à Convenção de São José, e que também levou o caso ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, no STF, o voto vencedor, do ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que não havia qualquer impedimento, em função de o país ser Estado-Parte da Convenção de Direitos Humanos, de impor uma legislação que protegesse os agentes do Estado contra ataques à honra, desde isso fosse feito de forma proporcional.

Além disso, afirmou Barroso no julgamento, o funcionário público, ao agir em nome do Estado, está exposto a toda uma série de restrições e imposições que diferem daquelas impostas ao cidadão comum. Seria justo, portanto, que ele também contasse com proteções especiais que servissem como garantia de que ele poderá exercer seu trabalho apropriadamente.

“Não se trata de conferir um tratamento privilegiado ao funcionário público. Trata-se, isso sim, de proteger a função pública exercida pelo funcionário, por meio da garantia, reforçada pela ameaça de pena, de que ele não será menosprezado ou humilhado enquanto se desincumbe dos deveres inerentes ao seu cargo ou função públicos”, disse o ministro.

Os dois votos vencidos no julgamento de 2020, que acabou em 9×2, foram de Edson Fachin e Rosa Weber. Fachin foi quem abriu a divergência, e sua preocupação principal foi com a redação muito ampla do texto.

“O tipo de desacato é demasiadamente aberto e não permite distinguir críticas de ofensas. Ainda que se adote a interpretação defendida pelo relator, no sentido de não se admitirem ofensas praticadas na imprensa, nem as que sejam feitas longe da presença do funcionário público ou quando fora do exercício de suas atribuições, a abertura do tipo não esclarece se ação não se sobrepõe a outras condutas, como a de resistência ou a de desobediência”, disse o ministro Fachin.

Rosa Weber votou com Fachin, e disse que o tipo como se encontra hoje leva à autocensura dos cidadãos. “Uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento”, apontou.

No fim, o Supremo decidiu por acatar o crime como redigido hoje, apenas incluindo certas restrições a seu uso, para garantir que a punição seja imposta somente quando a crítica ultrapassar o limite do razoável e passar à ofensa. Mesmo assim, o desacato continua sendo um ponto de questionamento eterno no ordenamento jurídico do país.

“Em comparação com outras democracias consolidadas, o Brasil enfrenta críticas quanto à manutenção do crime de desacato”, diz Reinaldo Santos de Almeida. Alguns países democráticos aboliram ou limitaram significativamente a aplicação deste crime, considerando-o incompatível com os princípios de liberdade de expressão. Organizações internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm se posicionado contra leis de desacato, argumentando que elas são contrárias aos princípios democráticos de liberdade de expressão e transparência governamental”, conclui.

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