Como a falta de gestão democrática pode atrasar políticas de combate à fome no Paraná

Em alguns casos, prefeitos evitam trazer o problema da fome à tona, um entrave para a consolidação de políticas públicas

Praticamente metade dos municípios paranaenses ainda não estão integrados ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), programa criado em 2006 pelo governo Federal como a espinha dorsal da política de Estado de combate à fome e à miséria no país e de garantia ao direito humano à alimentação.

O sistema prevê participação da sociedade civil na elaboração de praticamente todos os requisitos exigidos para a formalização da adesão. Ao mesmo tempo importante, a condição pode ser um dos motivos que “afugenta” gestores não muito animados com o envolvimento popular no debate, analisa o Ministério Público do Paraná (MPPR).

A expectativa é de que um trabalho conjunto entre o órgão e o Conselho Estadual de Segurança Alimentar (Consea) avance neste placar – uma corrida contra o tempo no momento em que o estado vê crescer a pobreza entre a população.

Complemento da 2ª edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), divulgado neste mês pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), estima que 53,5% dos lares paranaenses enfrentam algum grau de insegurança alimentar.

A empreitada de estímulo ao cadastro das prefeituras paranaenses ao sistema nacional, portanto, é uma tentativa de diminuir o drama do cenário.

Embora não seja obrigatória, a adesão pressupõe a execução de ações de acompanhamento, monitoramento e avaliação da segurança alimentar e nutricional das cidades – o que permite acompanhar quem está sem comida na mesa e onde, por exemplo –, além de incluir a sociedade civil ao longo de todo o processo e aumentar a transparência no uso dos recursos públicos destinados à área.

Instituído por lei, o Sisan atua como um mecanismo tripartite por meio do qual União, estados e municípios se articulam para implementar e executar as políticas nacionais de combate à fome. A integração ao sistema exige do município o estabelecimento de um conselho de segurança alimentar e nutricional; a instituição de câmera intersetorial (Caisan) com o envolvimento de secretarias e outros órgãos administrativos na efetivação das ações temáticas; e a realização de conferências para a elaboração de propostas e diretrizes até chegar à estruturação do o plano municipal de segurança alimentar.

Democracia participativa

No ano passado, o Consea e o MPPR assinaram um termo de cooperação para alargar a lista de municípios paranaenses vinculados ao sistema.

“A nossa intenção é que todos os recursos liberados passem por um crivo. No Paraná, estamos longe de ter o que é necessário [em termos de recurso] e, com esse pouco, tem que ser evitar ao máximo que o dinheiro seja carimbado a municípios alinhados politicamente”, diz Maria Isabel Corrêa, vice-presidente do Conselho Estadual.

Desde então, aumentou de 168 para 200 o total de cidades do Paraná com termo já publicado. A situação melhora quando considerados os municípios que já começaram a se mobilizar para atender os requisitos do sistema: 316 dos 399 já deram o ponta-pé inicial com a implementação de um conselho municipal de segurança alimentar.  

Na região metropolitana de Curitiba, apenas 10 das 29 prefeituras (Almirante Tamandaré, Araucária, Campo Largo, Cerro Azul, Colombo, Pinhais, Quitandinha, Rio Branco do Sul, Rio Negro e Curitiba) estão oficialmente dentro do Sisan. O Ministério Público já tem definida a convocação de uma reunião com os gestores dos demais municípios da área para debater a importância da iniciativa.

O Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos (CAOPJDH) defende que a inexistência dos componentes do sistema “significa contundente indicador da ausência de promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada, visto que demonstra a falta de acesso da população local a importantes mecanismos de exigibilidade desse direito”.

O entendimento está em nota técnica lançada no início do ano e que trata justamente da obrigatoriedade da promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) pelas gestões municipais.

Segundo o procurador-geral de Justiça, Gilberto Giacoia, a intervenção do Ministério Público junto aos municípios paranaenses respeita a autonomia das prefeituras, mas não deixa de considerar a obrigatoriedade dos gestores de garantirem o acesso de seus cidadãos à alimentação adequada – direito que, desde 2010, está previsto na Constituição Federal.

“A intervenção que o Ministério Público faz leva em conta o fato de que a adesão não é obrigatória, mas ter uma política relativa à segurança alimentar e nutricional, isso é obrigatório. Se não quiser aderir ao Sisan, mesmo assim o município deverá ter uma estrutura organizacional que seja responsável por esse tema, pela implementação da política e pelo atendimento das pessoas que se encontram em insegurança alimentar e nutricional’, afirma o procurador.

À frente das discussões, Giacoia sugere hipóteses que ajudam a explicar o fato de, mais de 15 anos depois da instituição do sistema, muitos municípios paranaenses ainda não estarem oficialmente vinculados a ele, ou seja, sem uma política de nível local estruturada de combate à fome.

Por um lado, diz ele, muitos gestores ainda desconhecem o Sisan e as características da proposta. Mas também inflam esse grupo governantes que adiam os debates sobre a temática para evitar trazer o problema à tona e envolver a sociedade civil na tomada de decisões.

“Esses espaços de democracia participativa às vezes não são bem aceitos por aquele governante que não quer dar espaço para a manifestação da população, não quer fazer uma conferência para que lá se confira o que o poder público tem feito. Acho que um tanto é por esta falta de gestão democrática, do reconhecimento da importância de você ter, em todas as áreas das políticas públicas, essa participação na formulação da política e no controle das ações, como fala expressamente a constituição”, destaca Giacoia. “Infelizmente nem todos os governantes públicos têm essa sensibilidade, especialmente para atender aos interesses da população que se encontra afastada da possibilidade do exercício dos direitos elementares da cidadania”.

Participação da sociedade na elaboração de políticas é prerrogativa do Sisan. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Fome demais, recursos de menos

A nível nacional – apesar de os Conselhos Estaduais, os Cosans, continuarem atuando –, o Brasil deixou de ter um Conselho de Segurança Alimentar. O órgão pelo presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, tinha atribuição de assessorar a presidência da República nas temáticas referentes à política nacional da área e, no âmbito do Sisan, funcionava como articulador da implementação das políticas públicas em rede.  

A reformulação assinada no Palácio do Planalto ocorreu em meio ao aumento da fome no país, tendência que já vinha sendo observada nos últimos anos e atingiu ápice com a pandemia. Estimativa da Rede PENSSAN indica, atualmente, 33 milhões brasileiros em condição de fome extrema, impactados também pela falta de recursos destinados à garantia da alimentação.  

A execução da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), que compõe o Sisan, envolve programas estratégicos minguados em termos de verbas.

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA, renomeado pela gestão Bolsonaro como Alimenta Brasil), a exemplo, teve suas cifras reduzidas drasticamente. Somente no Paraná, o ápice de R$ 30,98 milhões aplicados em 2012 em apenas uma das modalidades da inciativa, a de compra direta da agricultura familiar com doação simultânea (CPR Doação), despencou para R$ 1,1 milhão no ano passado.

Em outro eixo, o que contempla acesso à água, também houve cortes profundos. A distribuição de cisternas à população do Nordeste atingiu desde 2020 os menores patamares consecutivos, mostrou reportagem do portal UOL.

“Nesse caso, obviamente, a gente estimula e vai continuar estimulado os municípios a aderirem ao Sisan. Mas também não basta ter a melhor das políticas. O que precisa é destinação dos recursos para a implementação delas”, acrescenta Giacoia.

Participação também é política

A formalização dos municípios junto ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional não é uma solução final para o problema da fome no Brasil. Mas a adequação a ele, além de facilitar o acesso a orçamentos de programas específicos e contribuir para capacitação de gestores, institui mecanismos de monitoramento de indicadores essenciais para a definição de políticas e ações estratégicas de combate à miséria em todos as esferas administrativas.

Pela federação, a última pesquisa sobre a fome no país, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi divulgada em 2020, como dados de 2018 e 2017. A espera é que o novo Censo, atrasado em dois anos, traga novos dados sobre a situação.

Como outros levantamentos independentes – e não menos importantes – a pesquisa deverá mostrar um aumento generalizado da fome no país. E não precisa olhar ao longe para juntar indícios.

“A realidade da fome vem crescendo nos últimos cinco anos nas periferias, isto é, antes da pandemia. Com o Covid-19 a situação tornou-se mais evidente e também a imprensa deu mais atenção ao tema da fome em nossa cidade”, afirma o Padre Joaquim Parron, doutor em Educação e coordenador do SOS Vila Torres, iniciativa que atende hoje 2 mil famílias em sete vilas das periferias de Curitiba.

Apesar de o relato do religioso se referir à capital paranaense, faz parte de um retratos sem endereço. Segundo o levantamento da Rede PENSSAN, seis em cada 10 lares comandados por mulheres enfrentam insegurança alimentar. Onde a responsabilidade maior é de pessoas pretas e pardas, 65% dos lares convivem com restrição de alimentos.

“As pessoas que passam necessidade de alimentos são das periferias, especialmente das áreas de ocupação, mães com vários filhos e pessoas desempregadas. Mesmo tendo alguns programas governamentais as pessoas mais necessitadas não conseguem acesso a esses programas. Assim, o perfil dessas pessoas é de pessoas das periferias, mães pobres e desempregados”, diz o padre.

Para ele, além de ações imediatas, propostas de políticas públicas a médio e longo prazo – como o fortalecimento da Educação para coisas básicas e para incentivar a participação popular no debate desses temas – precisam ser parte da busca por solução.

“Acredito que apenas a organização popular e a educação de base podem ajudar a transformação dessa realidade de exclusão e fome dos pobres e levar às pessoas a dignidade, que é tão fundamental ao ser humano. Superando a fome e a exclusão socioeconômica, vamos diminuir a violência e também a morte de pessoas inocentes. Sem uma educação séria e inclusiva não teremos um futuro como brasileiros”.

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