2º estado mais “agro” do país, Paraná vê fome bater à porta de mais de 50% dos lares

Em casas com crianças, índice de segurança alimentar é ainda maior

A estimativa mais recente divulgada pelo Ministério da Agricultura é de que o Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP) do Paraná encerre 2022 na casa dos R$ 144,04 bilhões. Ligeiramente mais tímida do que as de 2021 e 2020, em tendência nacional, a previsão supera o indicador pré-pandemia e continua com força de sobra para manter o estado no topo do ranking, atrás apenas do Mato Grosso e pelo terceiro ano seguido à frente de São Paulo.

A colocação é de peso em um cenário cujo desempenho abastece narrativas em tempos de campanha eleitoral, muito embora a euforia dos holofotes tenha sido um tanto ofuscada por realidade longe de ser paralela. Como na lei da física que explica a atração de dois corpos de cargas opostas, os bons números têm transitado entre o discurso da eficiência e a volta do Brasil ao mapa da fome. Levantamento mostra um Paraná onde 53,5% dos lares enfrentam algum grau de insegurança alimentar. Ou seja, em mais da metade dos domicílios há relatos de incerteza em relação ao acesso aos alimentos ou então redução real – e até mesmo a falta – do prato sobre a mesa.

Os números constam no suplemento da 2ª edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) e divulgado nesta quarta-feira (14).

Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril deste ano a partir de entrevistas em 12.745 lares de 577 municípios de todo o país. A amostra foi submetida à metodologia específica da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) e, em continuidade ao caderno principal, publicado em julho, agora dá endereço à gorda fatia de 58,7% da população brasileira identificada em situação de insegurança alimentar, da qual 33,1 milhões em condição extrema de fome.

No Paraná, mostram os resultados recém compartilhados, moradores de 8,6% dos 501 domicílios entrevistados afirmaram passar fome. Significa, de acordo com a pesquisa, não comer por falta de dinheiro para comprar alimentos; fazer apenas uma refeição ao dia, ou ficar o dia inteiro sem comer. Insegurança alimentar leve, quando não há garantia de compras próximas ou de qualidade das refeições, e moderada, em que houve redução da comida, foi diagnosticada em, respectivamente, 29,9% e 15%.

O total de 53,5% de casas com dúvidas sobre o que pôr na mesa amanhã pende a balança no sentido contrário aos 46,5% lares onde falta de comida não é uma realidade no Paraná. Nos números amplos, é a maior disparidade entre os estados da região Sul. Em Santa Catarina, 40,6% dos domicílios foram classificados dentro de algum nível de insegurança alimentar; no Rio Grande do Sul 47,6%. O estado gaúcho, no entanto, tem a maior parcela das casas em situação de miséria total, com 14,1% nesta situação, ante 4,6% dos lares catarinenses (e 8,6% no PR).

“[Quando comparamos] sempre os governantes vão usar a informação a seu favor, falando que a gente não é o pior. Mas a questão é que estamos longe de ser o melhor e estamos falando de fome”, observa Cilene Gomes Ribeiro, presidente do Conselho Regional de Nutricionistas do Paraná (8ª Região). “A segurança alimentar nutricional trabalha com o fornecimento de alimentos em qualidade e em quantidade adequadas, não é só encher a barriga da pessoa com qualquer coisa. Mas agora estamos falando de pessoas que não tem nem comida boa nem a ruim no prato”.

Tendência

O apêndice do II Vigisan avaliou o perfil socioeconômico dos entrevistados para corroborar a lógica diretamente proporcional entre a pobreza e a fome. Colocou em números e deu cor viva à tragédia que se tenta ofuscar nas tribunas, nos plenários, em cadeia nacional. Mesmo em estados das regiões Sul e Sudeste, com uma dinâmica urbana industrial mais desenvolvida, “ficou evidente a relação entre a pobreza e a IA [insegurança alimentar] em todos os níveis, aí incluída a fome”, diz o estudo.

Os traçados mostram um cenário encorpado pela pandemia, mas que começou a se desenhar muito antes dela. “A pandemia agravou, mas a tendência vem de desde lá de trás, quando o Estado reduziu seu espectro de atuação, eliminou e precarizou políticas. Este governo agravou ainda mais o quadro, e recuperar essas políticas seria uma forma de fazer com que o Estado volte ao seu papel de mitigador”, afirma Nilson Maciel de Paula, docente aposentado do departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e um dos coordenadores da Rede PENSSAN.

Envolvido diretamente na elaboração do inquérito, o professor ressalta a importância dos novos dados para análises mais fragmentadas, de estado em estado, mas que resultam dos mesmos sismos.

“É triste ter o dado, mas ao mesmo tempo, felizmente ele vem para apontar a existência disso que a gente tem visto e alertado há muito tempo”, acrescenta Ribeiro.  

Para ambos os especialistas, as informações detalhadas no levantamento carregam vestígios de episódios anteriores à pandemia – embora a crise sanitária tenha empurrado a situação mais ao extremo. E são, portanto, consequências diretas de medidas que inviabilizaram políticas alimentares e discussões do tema no âmbito da saúde pública brasileira.  

A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é apontada como um destes percalços. Órgão de assessoramento do governo Federal em relação ao tema, foi extinto pela gestão de Jair Bolsonaro meses antes do Brasil e do mundo mergulharem em uma das maiores crises sanitárias da história. Não fosse isso, afirmam os especialistas, poderia ter tido papel importante em ações coordenadas da União com os estados e municípios para reduzir os impactos da fome entre a população.

O governo Bolsonaro, que no mês passado chegou a afirmar não haver fome no Brasil “pra valer”, também remodelou e encolheu com força verbas do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), agora Alimenta Brasil, criado especificamente para atender brasileiros em situação de insegurança alimentar e nutricional. Em agosto deste ano, ainda vetou o reajuste nos repasses a estados e municípios para a merenda escolar. Os valores não são atualizados desde 2017 e derreteram de vez em meio ao pico de inflação registrado no país no último ano, sobretudo entre os itens da cesta básica, um fardo maior para quem ganha menos.

O mais recente recorte do II Vigisan não chega a apresentar relações entre os padrões de segurança e insegurança alimentar e programas de transferência de renda – só em maio deste ano é que o Auxílio Brasil foi instituído em lei e, antes disso, o auxílio-emergencial não chegava aos lares com fluxo e valores constantes. No entanto, os indicadores confirmam a relação entre pobreza e falta de comida da mesa.

Nos lares do Paraná entrevistados para a pesquisa com rendimento mensal domiciliar per capita de até meio salário mínimo, apenas 22% declararam estar em segurança alimentar. Já nas casas com renda per capita superior a meio e até um salário, o indicador de segurança chegou a 38,6%. Na capital do estado, Curitiba, o preço da cesta básica calculado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em agosto foi de R$ 688,78, equivalente a 61,44% do salário mínimo.

“Esses dados vêm para retratar o que o que temos tanto falado nos conselhos, nas casas que a gente representa, que essa insegurança alimentar vem se se agravando tanto no Paraná como no Brasil e isso impõe uma necessidade mais do que urgente dos governantes olharem para a população e agirem para garantir o mínimo acesso à alimentação de qualidade”, diz a presidente do Conselho Regional de Nutricionistas do Paraná. “A gente não pode negar que quem tem fome é invisível para boa parte da população. O problema é que quem tem condição, quem tem comida na mesa, não consegue atravessar esse muro para perceber a outra realidade”.

Ratinho comemora números junto ao setor do agronegócio no Paraná. Foto: Rodrigo Felix Leal/ AEN 

Supermercado do mundo

Apesar de o Paraná e nenhum outro estado da região Sul ter valores de prevalência de insegurança alimentar grave superiores à média nacional, os dados não subestimam a presença da fome em nenhum mapa local.

Por aqui, o aumento da fome na população se estabelece em meio a recordes na produção de alimentos no campo. O governo comemora com frequência os alcances medidos pelo Valor Bruto da Produção Agropecuária, e a meta do governador e candidato à reeleição Ratinho Jr. (PSD) é, em suas próprias palavras, transformar o estado no “supermercado do mundo”.

A estimativa divulgada pelo Ministério da Agricultura com base nas informações de agosto é um rendimento para 2022, no Paraná, de R$ 36,9 bilhões com a cultura de frango, R$ 36,3 bilhões com o cultivo de soja, e R$ 23,3 bilhões com soja.

Em quarto lugar, aparece o leite, cuja expectativa de produção é de R$ 8,4 bilhões. O alimento é base do programa estadual Leite das Crianças, que também sofreu um desmonte em meio à escalada da fome em tempos de pandemia. No ano passado, o governo chegou a recorrer a recursos do Fundo Estadual para a Infância e Adolescência (FIA) para não ter de interromper a distribuição aos cadastrados.

Os resultados apontados pelo suplemento, aliás, mostram um contexto ainda mais frágil em lares onde há crianças. No Paraná, a insegurança alimentar em domicílios com presença de menores de 10 anos é ainda maior e representa 57% da amostra entrevistada.

A contradição salta aos olhos. A constatação de lares em condição de fome extrema em um dos estados onde mais se produz alimentos no Brasil – o agronegócio responde por um terço do PIB paranaense – é, no entendimento do professor Nilson de Paula, a antítese mais evidente modelo econômico em curso. Isso explica, diz ele, a incongruência entre a produção e o acesso a alimentos em um estado vendido como o “celeiro do mundo”.

“O diferente aqui seria se nós estivéssemos presenciando uma sintonia entre produção dos meios de vida e a distribuição equitativa dos meios de vida. Não é isso que acontece porque a dinâmica capitalista dos mercados leva a uma desconexão entre a produção dos alimentos como resposta às demandas, àquilo que o mercado estimula para ser produzido, e o lado do consumo desses produtos”, diz Paula. “O Paraná ser um grande produtor e a população que vive aqui não ter meios para acessar esses produtos mostra essa grande contradição. Você tem a produção, mas a forma de acessar essa produção passa por um outro processo, que envolve questões como empobrecimento, perda do poder de compra, a concentração da renda. E aí você tem a fome caminhando junto ao empobrecimento”.

Nesta mesma tese, o modelo econômico neoliberal prevê a atuação do Estado como preenchedor das lacunas – que afetam, sobretudo, os mais pobres. Mas quando os entes públicos deixam de atuar, as condições tendem a caminhar em marcha acelerada em direção aos extremos.

Por isso, mais do que indicar a realidade, os números do suplemento II Vigisan devem sem levados em consideração para a formulação urgente de políticas mitigadoras da fome no Paraná e no Brasil, defendem os especialistas ouvidos pela reportagem.

“Se está comprovada a existência, ela precisa ser corrigida. Todos esses candidatos que estão aí, sejam deputados federais, estaduais, senadores, candidatos a governadores, a presidente, precisam usar isso como cartilha para uma política pública e realmente melhorar a qualidade de vida das pessoas. Sem comida não existem homes, e sem homens não existe sociedade. A coisa mais absurda do mundo é você ver, você deixar uma pessoa morrer de fome”, diz a nutricionista Cilene Ribeiro, do CRN.

Para o professor da UFPR, os dados da fome no Brasil são apenas a ponta do iceberg. Segundo ele, a falta de comida na mesa das pessoas precisa ser compreendida e tratada em paralelo a outras temáticas tão afetadas nos últimos anos quanto a questão da segurança alimentar.

“O lado oculto dessa tragedia é não olhar com devida atenção a fome inserida num conjunto de outras mazelas. Quem está passando fome não tem renda, não tem moradia, não tem saúde e por aí a pior”.

Procurado, o governo do Paraná não se manifestou sobre os dados do levantamento.

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2 comentários em “2º estado mais “agro” do país, Paraná vê fome bater à porta de mais de 50% dos lares”

  1. “No Paraná, mostram os resultados recém compartilhados, moradores de 8,6% dos 501 domicílios entrevistados afirmaram passar fome.” – Retirado da reportagem. Essa é a manchete correta. Não concordo com o título “Paraná vê fome bater à porta de mais de 50% dos lares”….. Fornece uma interpretação errada da realidade. Outro ponto, 501 domicílio? puxa, amostra ridicula…. muito pequena para tal conclusão. Distribuição no mapa desses domicilios? Critérios aleatórios para escolha deles? Etc etc etc. Por isso que cada dia imprensa perde credibilidade. Não pode ficar manipulando para enfatizar uma narrativa.

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