Caso de ativista trans que teve a casa invadida e facas deixadas sobre a cama é arquivado sem perícia

Em 2019, quando liderou a primeira parada LGBT de Apucarana, Renata Borges foi vítima de ameaças

Em novembro de 2019, a ativista trans Renata Borges levantou a primeira parada LGBT de Apucarana, no interior do Paraná, sob ameaças do conservadorismo local. “O pessoal me ligava dizendo que ia me bater, que ia me matar, mas eu continuei”, relembra. Uma das violências sofridas após a iniciativa ocorreu um mês antes do evento, quando ela teve a casa invadida durante uma viagem de trabalho.

No dia 18 de outubro, ela veio a Curitiba para palestrar aos alunos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) sobre modelos de cidade seguros. Na volta, recebeu a notícia da invasão. “Eu peguei o último ônibus, perto das 23h. Quando estava na estrada, soube que entraram na minha residência e os vizinhos ligaram pra polícia. Um amigo meu foi lá desesperado e viu que tinham revirado tudo”, fala. Na ocasião, o mesmo amigo registrou o boletim de ocorrência (BO) que deu origem a um inquérito policial pelo delito de furto qualificado.

No entanto, assim que entrou em sua residência, Renata percebeu que não se tratava de apenas um furto. “Eu vi que jogaram todos os meus pertences em cima da cama com duas facas sujas de terra”, resgata. Não à toa, o ato simbólico chamou a atenção da ativista, que entendeu aquilo como uma ameaça. “Sempre que eu faço palestra sobre LGBTfobia, digo que as lâminas são os objetos que mais machucam a gente, né? O tiro é rápido, as lâminas têm um requinte de crueldade. Elas nos cortam, rasgam, mutilam”.

Foi quando ela ligou para a polícia e pediu para que as facas fossem retiradas de sua casa, mas a Delegacia da Mulher se recusou a fazer o trabalho. Em seguida, Renata afirma que se dirigiu até a unidade policial e deixou claro que estava se sentindo ameaçada e que as facas não eram suas. O depoimento teria sido gravado em vídeo pelas autoridades policiais. Mesmo assim, a delegada Sandra Nepomuceno não recuou de sua decisão e as armas não foram apreendidas.

O Plural solicitou acesso ao BO à Polícia Civil (PC) e teve o pedido negado com base na Lei de Abuso de Autoridade, mas a assessoria confirmou que o relato sobre as facas consta nas diligências. Embora o Artigo 147 do Código Penal brasileiro considere “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave” como crime de ameaça, a hipótese não foi considerada e o inquérito seguiu apontando para furto qualificado.

“Se acontecer qualquer violência, eu sei as vias por onde recorrer, mas quando acontece com a gente, a gente fica extremamente vulnerável. Eu só chorava. Aí eu liguei pra Léo Ribas, da Liga Brasileira de Lésbicas, e elas pediram a intervenção do Ministério Público. Veio um papiloscopista lá de Londrina pegar as facas”, relata Renata.

Após a coleta, o que se seguiu foi um silêncio de dois anos. Ela só recebeu qualquer resposta sobre as investigações no mês passado, e não foi boa: em maio, o caso foi arquivado pelo Ministério Público de Apucarana porque nunca foi identificada a autoria do suposto furto.

E as facas?

Quando soube do arquivamento, Renata procurou o Plural com uma pergunta: e as facas? “E as digitais? O que aconteceu? Isso é terrível, essa sensação de impotência, de não ter a quem recorrer, de não saber se você vai estar viva. Corpos LGBT, no interior, são negligenciados. A sensação é de que a lei nos criminaliza mais do que protege”.

As facas encontradas na cama de Renata Borges. Foto: arquivo pessoal

Em nota enviada à reportagem, o Ministério Público disse que “o inquérito policial relacionado aos fatos foi analisado pela 5ª Promotoria de Justiça de Apucarana que promoveu seu arquivamento em maio de 2020 por ausência de indícios de autoria”. Em relação às facas encontradas, a Promotoria de Justiça acrescentou que elas “foram apreendidas no dia 31 de outubro de 2020, ao passo que o delito foi descoberto em 22 de outubro de 2019, o que inviabilizaria qualquer cadeia de custódia a ponto de submetê-las à perícia datiloscópica”.

Conversei com o promotor que arquivou o caso, Fabrício Drumond Monteiro, que afirmou não ter participado ativamente da investigação. “Eu recebi o inquérito do jeito que veio e até determinei alguma diligência, como a oitiva de algumas pessoas da convivência dela, que poderiam fornecer alguma coisa, mas não achamos o autor do furto”.

Segundo ele, o processo foi instaurado como furto porque levaram um botijão de gás e dinheiro da casa de Renata. “Quanto às facas, acho que a polícia, na tese do furto, não as apreendeu. Por intervenção do Ministério Público de Curitiba, fizeram a apreensão das facas, mas foi coisa fora do inquérito. Pra mim, só surge o termo de apreensão no dia 31 de janeiro”.

O problema é que objetos suspeitos precisam ser colhidos na cena do crime, pois a perícia é delicada. A demora na apreensão das facas fez com que se tornassem inúteis, motivo pelo qual nunca foram periciadas. “O manuseio, o tempo e a poeira tiram qualquer evidência e fica inservível. Pra esse tipo de perícia, precisa ser realizada a coleta no momento, e de forma isolada, para que não haja contaminação de um agente estranho. É complicado de pegar e suscetível a sumir, por isso as facas só foram apreendidas, sequer foram remetidas à perícia”, finalizou o promotor.

Delegacia da Mulher

Liguei para a Delegacia da Mulher de Apucarana e conversei com a escrivã Elaine Cristina Gonçalves, que acompanhou o caso. Perguntei a ela sobre as facas.

– Por que as facas não foram apreendidas pela polícia?

– A faca foi apreendida, ela trouxe. 

– Mas ela não podia ter levado. Vocês não tinham que ter recolhido?

– Não tem como ser periciado um objeto que não tem autor. Não tinha com o que confrontar esse objeto dela, que ela alega. 

– Então a casa dela foi invadida e deixaram facas…

– Não, as facas eram dela.

– Mas não podiam ter impressões digitais?

– Pra confrontar com o quê?

– Pra descobrir quem foi a pessoa que entrou na casa.

– Quem foi a pessoa que entrou na casa?

– Esse é o trabalho na polícia, não?

A partir daí, Elaine cortou a conversa me perguntando exatamente o que eu queria, e então passou a ligação para a nova delegada responsável pela Delegacia da Mulher de Apucarana, Luana Lopes. Ela me atendeu depois de alguns minutos, já explicando o BO.

– No momento que o procedimento foi realizado na delegacia, a vítima narrou uma situação de furto. Então, não existe ameaça, não existe violência, entendeu? A faca que você está falando aí pertence à vítima. Em momento nenhum, quando ela esteve na unidade policial, ela narrou que havia sido ameaçada com essa faca, motivo pelo qual a faca não foi apreendida, entendeu? Se ela tivesse narrado que havia sido ameaçada, primeiro que o delito não seria de furto, seria de roubo, entendeu? E aí, sim, a faca poderia ter sido apreendida. 

– Pelo que conversei com a Renata, o caso é um pouco mais sensível porque se trata de uma ativista trans que fala sobre as lâminas e os cortes que mutilam o corpo de pessoas LGBT. Então, a faca é simbólica e foi deixada em cima da cama dela. 

– Mas a faca pertence à casa dela, ok? No caso, eu acredito que se ela tivesse sido ameaçada com essa faca, ela relataria aqui na unidade, e não foi o que aconteceu. No momento dos fatos, inclusive, ela não estava na casa, você está entendendo? Então, a faca não foi objeto de ameaça quando levaram os objetos da casa dela.

– Numa situação dessa, vocês só considerariam ameaça se a pessoa deixasse um bilhete junto?

– Não necessariamente um bilhete, mas ela teria que ter relatado no momento do fato. Vocês estão conversando conosco a respeito de uma apreensão para confronto genético, uma coisa complicada de ser feita porque se a faca não tiver sido apreendida no momento do fato, de forma imediata, pra que seja acondicionada de forma correta, não tem como ser feito o confronto genético posterior, você está entendendo? Não foi isso que ela fez no BO. 

“Já nem sei mais se amanhã vou estar viva”

No dia 22 de outubro de 2019, o Plural publicou uma reportagem sobre o caso. Na ocasião, Renata disse à reportagem que interpretou as facas como aviso e falou das inúmeras ameaças recebidas por conta da parada LGBT de Apucarana. “O que fizeram comigo é uma ameaça para eu parar de querer entrar onde eles acham que não devo”, ela disse. “Eu me senti fragilizada, desarticulada e invisível. E quem segurou minha mão foi a Liga Brasileira de Lésbicas”.

“Nós acionamos o Ministério Público de Curitiba. Ela achou que a motivação realmente foi essa ameaça, tá? Inclusive, a gente conseguiu providenciar escolta policial pra ela sair de Apucarana e vir pra Curitiba, com passagens financiadas pela Liga”, rememora Léo Ribas.

“Quando se trata de crimes de cunho LGBTIfóbicos, é tudo muito complicado, principalmente em cidades interioranas. Então, a verdade é que a gente observou uma falta de intenção da delegacia local de fazer os devidos encaminhamentos, o que dificultou demais as investigações”, expõe Léo. “Além de ser uma mulher trans, a Renata Borges incomoda mesmo – e tem que incomodar. Ela faz com que essas violências sejam evidenciadas na região”.

Renata garante que explicou a situação das facas e o sentimento de ameaça à polícia. “Eu disse que não conhecia as facas, que não eram minhas, eu não toquei nelas. É muito cruel como a polícia faz… As nossas vidas não têm valor nenhum, as invasões, as ameaças… É por isso que muitas vezes eu sofro violência e já não procuro mais as forças de segurança do Estado. Já nem sei mais se amanhã vou estar viva”.

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1 comentário em “Caso de ativista trans que teve a casa invadida e facas deixadas sobre a cama é arquivado sem perícia”

  1. E a tal “delegacia da mulher” só se for então hétero-cis tomariam providências?
    Apenas, dentre inúmeras vezes, quem de fato são MUITO mais preconceituados: LGBTs e situações de gẽnero.

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