Caro homem, não se deixe intoxicar pela masculinidade

O especialista em criminologia Daniel Martins explica como o padrão da masculinidade faz mal a homens e mulheres

O que é ser homem? Quais os comportamentos, adereços, sentimentos e interações que marcam um sujeito como homem? Os documentos que alguém leva na carteira ou um corpo definem se a pessoa poderá ser considerada um homem? As questões podem parecer bobas, afinal de contas, “homem é homem”. Mas, será mesmo? Como são construídos os padrões que determinam que até mesmo perfumes possuam uma divisão entre masculino e feminino? E quais as consequências e violências geradas por essa divisão?

Apesar de ser um campo relativamente novo, os estudos de masculinidades já somam quase quarenta anos de elaboração. Também nomeados como “estudos de homens” (men’s studies), esse interesse surge estimulado pelo feminismo no sentido de tomar as problematizações sobre gênero e enfocar a vivência dos homens.

Para isso, um primeiro conceito foi fundamental: o da “masculinidade hegemônica”, que é o modelo principal de uma sociedade que serve como parâmetro para formar e julgar as condutas de um sujeito como pertencente ao campo do masculino. É um conceito que parte do modelo mais difundido de homem: o de homem-padrão, por assim dizer, cuja aparência varia de acordo com a idade, mas, na essência, é construído com uma narrativa única, e tóxica, sobre o que é ser um homem.

Essa masculinidade hegemônica não é neutra. Ela se insere numa economia, numa divisão política dos gêneros, que exige uma contrapartida não apenas das mulheres, mas dos próprios homens. Não basta que as mulheres desejem esse modelo masculino. Os outros homens precisam reforçá-lo, aprová-lo e vigiar as condutas uns dos outros, verificando a adequação de cada um a esse padrão.

“Isso é coisa de viado” é a frase comum em rodas de homens heterossexuais quando um homem faz coisas tão insignificantes quanto reclamar que quebrou uma unha ou usar uma camiseta rosa. “Coisa de mulherzinha” também é um clássico quando se trata de pontuar os limites entre o que é ser homem e o que não é. Isso quando se fica no campo da “brincadeira”.

Uma rápida busca na internet com os termos “mata filho gay” pode ser bem elucidativa sobre quais as consequências desse padrão de masculinidade. São casos extremos e nem todos os homens que fazem brincadeiras sobre sexualidade ou gênero de outros homens cometeriam atrocidades assim. O problema, entretanto, não está só na execução de crimes como estes, mas na legitimação silenciosa, nas pequenas partes do iceberg que o ajudam a flutuar. O problema está, justamente, no estabelecimento de um padrão desejável de masculinidade que não serve apenas como referência, mas como norma, como aquilo que confere maior ou menor humanidade às pessoas.

E é curioso perceber como, apesar de seus impactos, a masculinidade seja pouco pensada como chave de elaboração de políticas públicas, sobretudo, nas áreas de Saúde e Segurança Pública. Segundo dados da Seguradora Líder, responsável pela administração do seguro DPVAT, a maior parte dos envolvidos em acidentes de trânsito é homem, representando 88% das indenizações por morte.

De acordo com o Levantamento nacional de informações penitenciárias do DEPEN, os homens correspondem a 95% da população carcerária. Por fim, homens são as principais vítimas de mortes por causas externas – como homicídios, acidentes e suicídios – chegando a figurar quase onze vezes mais nessa categoria de óbitos do que as mulheres, segundo as estatísticas de Registro Civil do IBGE de 2017. Os homens negros jovens lideram os números de homicídios e suicídios.

Isso não significa que nas relações de gênero os homens sejam igualmente vítimas. Nem implica que as mulheres não precisem de políticas públicas específicas de proteção contra a violência doméstica. O que esses dados mostram há tanto tempo é que existe uma relação intrínseca entre masculinidade e violência.

Testosterona? Dificilmente, já que outros países revelam dados bastante diferentes e contam com homens com os mesmo hormônios. A masculinidade é um padrão de comportamento, uma identidade, uma forma de subjetividade que não é natural, biológica, mas que varia em sua expressão de acordo com o contexto regional, econômico, social e racial.

Os modos de exercício dessa masculinidade hegemônica são facilitados para alguns e barrados para outros. Alguns estudiosos como Michael Kimmel e Raewyn Connel chegam a usar o termo “masculinidades subalternas”, como forma de demarcar formas de ser homem que, apesar de culturalmente presentes e difundidas, não correspondem à narrativa principal do que é o masculino.

É por isso que se fala em “masculinidades”, no plural, inclusive. Apesar disso, a relação entre masculinidade hegemônica e violência acaba prevalecendo, uma masculinidade que também se quer branca, heterossexual e cisgênero.

E os próprios homens sofrem por esses mesmos padrões. Matam e morrem por eles, deixam de cuidar de sua saúde, perdendo a oportunidade de construir relações significativas entre si, com suas famílias, deixando de viver a própria sexualidade livremente para servir a um modelo imaginário e imposto por seus pares.

A transformação da masculinidade tóxica pode ser a chave para a quebra de muitos ciclos de violência. Um caminho de retorno para que os homens possam, de maneira completa e empática, não serem mais algozes de si mesmos e dos outros.

 

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