À revelia do patriarcado, ela construiu uma aldeia com as próprias mãos, no litoral do Paraná

Aos 32 anos, Juliana Kerexu é a cacica da Tekoa Takuaty, de Paranaguá

Há quatro anos, Juliana Kerexu teve dois sonhos. Numa noite, sem saber quem era a deusa da água doce cultuada nas religiões de matriz africana, ela fez seu primeiro contato com Oxum. “Uma filha veio até a porta da minha casa, vestida de amarelo, e falou assim: eu só vim dar um recado da mamãe Oxum, ela quer falar com você. Ela pediu pra eu te dizer que a partir desse momento tudo que vocês fizerem vai dar certo. Mesmo com todas as dificuldades, vocês vão conseguir”.

O segundo sonho também tinha ares de misticismo. Ela observava uma aldeia de cima, sem conseguir identificar os moradores. “Eu cheguei numa parte que tinha uma casa de reza e aquilo me chamou tanta atenção que eu me esforcei bastante pra descer até lá. Quando toquei na parede embarrada dessa casa, acabei acordando”, relembra. 

Passado algum tempo, as imagens parecem premonitórias. Naquela época, Kerexu e a família haviam acabado de voltar a viver na aldeia Pindoty, na Ilha da Cotinga, em Paranaguá, após uma série de idas e vindas por discordância das lideranças locais. Ela estava em Santa Catarina quando foi buscada pelo cacique para retomar o antigo trabalho, mas o retorno produziu tantos conflitos que as partes entraram em acordo: o melhor mesmo era ir embora.

“Só que a gente já tinha ido pras outras aldeias e não tinha se acostumado”, conta a indígena da linhagem Guarani Mbya. “Os parentes me procuravam perguntando quando a gente ia sair de novo. Nós pensamos em fazer uma aldeia lá na Ilha Rasa da Cotinga, que também faz parte do mesmo território, mas lá tinha muita areia e pouca água, então não dava pra fazer o plantio, que é a nossa principal fonte de subsistência, então acabamos desistindo”.

Certo dia, após o episódio dos sonhos, Kerexu estava proseando com o ex-cacique. Ele contou que n’outro momento da história, um segundo cacique entrou em cena e ousou levar parte do povo para um canto da Ilha que até então ela desconhecia. “As pessoas que estavam na roda acharam engraçado e começaram a rir daquilo. Só que quando ele falou isso parece que me deu um estalo, daí eu falei pro meu marido: então vamos lá. A gente acabou vindo e era exatamente aqui”.

A construção da casa de reza. Foto: Juan Schenone/Projeto Origem

Tekoa Takuaty

No dia 16 de novembro de 2019, nasceu a Tekoa Takuaty – ou “Aldeia das Taquaras”. “A gente veio em quatro famílias, hoje somos seis, 25 pessoas. Fizemos o primeiro mutirão pra limpar a área, pra construir as casas e nos mudamos em dois meses”, fala Kerexu. 

Após a transição, ela foi eleita democraticamente cacica. “Quando teve eleição de formação das lideranças da aldeia, todos falaram: não tem outra pessoa para estar à frente porque você começou tudo isso. Estamos aqui devido a você. Eu fiquei emocionada porque de nenhuma forma pensava nisso, mas foi muito natural”.

O cargo de vice-cacique ficou com seu marido, Flávio Karaí Timóteo. Em pouco tempo, eles conseguiram fazer com que a aldeia fosse reconhecida pelos órgãos oficiais e vista pela Saúde Indígena (Sesai), que volta e meia se desloca até a região para fazer os atendimentos, inclusive a vacinação contra a Covid-19. Os moradores também ganharam os chamados “bananheiros” e uma placa solar.

Foto: Juan Schenone/Projeto Origem

Olhando em retrospectiva, ela diz que a mudança foi bonita, mas não romântica. “A gente foi boicotado, os barcos não queriam levar a gente. Uma vez eu falei pra minha mãe: tô me sentindo muito cansada, será que eu tô no caminho certo? Será que tô fazendo a coisa certa pra essas famílias que dependem de mim? E daí ela me abriu os olhos dizendo: lembra de quando eles riram? Sabe o que eles pensaram? Deixa ela ir, ela é mulher e não vai conseguir construir uma aldeia, não vai formar uma comunidade. Olhe pra tudo que você conseguiu”.

O sentido de comunidade da aldeia, na visão da cacica, foi construído no dia a dia, à base de muito diálogo. “Quando alguém tem um problema, eu digo: vamos sentar e conversar? Quero te ouvir, quero ouvir você falar o que tá te incomodando, qual olhar você tem pra esse problema. A partir daí a gente concilia. Ninguém vai pensar igual ao outro, ninguém vai ser igual ao outro, mas quando a gente vive num modo coletivo como a gente vive, é essa a força que a gente tem que trazer. Cada um traz o seu modo de pensar e a gente se fortalece”. 

Foto: Juan Schenone/Projeto Origem

Ancestralidade

Juliana Kerexu Mirim Mariano nasceu no dia 5 de dezembro de 1988, perto das seis da manhã, numa casinha feita de barro e coberta de sapê, no alto da colina da aldeia Pindoty. “Eu sou a única filha mulher entre sete irmãos homens e cresci com a minha avó materna. Ela me ensinou tudo que tinha que me ensinar e me colocou nesse caminho, sempre falando das mulheres fortes que me antecederam”.

Celebrar a ancestralidade é cultural para os indígenas. E no caso de Kerexu, a força da linhagem de mulheres foi passada de geração em geração. “Eu falo que o presente existe através do passado. A minha linhagem é de mulheres corajosas. A minha bisavó, minha mãe e minha avó, que sempre me dizia: Kerexu, você é forte, você é filha de karai, você traz o fogo que ilumina, o fogo que aquece, isso é você”.

Também foi por conta dessas figuras que ela conseguiu avançar na educação formal. “Na aldeia Pindoty só tinha até a quarta série. Quando terminava, parava de estudar ou tentava ir pro continente, mas como até hoje a gente não tem condições de ter um barco, é aí que entra a coragem da minha mãe. Ela decidiu sair da aldeia pra ir morar numa outra aldeia que dava pros filhos estudarem. Largou tudo”.

Em Santa Catarina, ela terminou o ensino médio sendo a única indígena da escola. Depois, voltou para Paranaguá, onde tentou fazer o magistério, mas acabou não concluindo por causa do valor do barco. Para este ano, o projeto é finalmente ingressar em uma universidade: a Federal do Paraná, na sede de Matinhos. “Fiz o vestibular, a gente tá esperando os resultados. Eu tô sempre buscando estar na ativa, aprender mais. Hoje, dou aula de Guarani pros não-indígenas on-line”.

Kerexu é uma liderança acessível e com frequência faz a ponte entre os não-indígenas e os povos originários. Ela abre as portas da aldeia, integra diversos movimentos sociais, aparece nos eventos falando de gênero e já teve até a vida retratada no documentário “Elas são o meu início”, que estreou no mês passado em Curitiba, no Cine Passeio.

Tamanho engajamento é fruto de uma luta que começou a ser plantada quando ela tinha apenas 16 anos. “Eu via de perto as dificuldades que as mulheres tinham quando iam vender artesanato, a violência, o preconceito, o racismo. Então eu comecei a participar das reuniões e chamar as mulheres. O cacique homem não vai nos escutar nem pensar nas nossas necessidades, então precisamos nos organizar”.

Foto: Juan Schenone/Projeto Origem

Pandemia

Durante a pandemia, a Tekoa Takuaty sofreu como a maior parte das comunidades indígenas. A renda das famílias vinha principalmente da venda do artesanato, mas com os decretos, elas precisaram parar de ir às ruas. Segundo Kerexu, também não deu para contar com o poder público como aliado. “Essa visão que o não-indígena tem sobre recebermos dinheiro da Funai, do governo, cesta básica… Sabe aquelas falas de preconceito? Isso é um engano. Os órgãos estão sucateados”.

O jeito, então, foi aprender a vender on-line, via Instagram, com a ajuda de apoiadores. Por um tempo, deu certo, mas nos últimos meses as vendas e doações também foram se tornando cada vez mais escassas. “Mas eu tô com o pensamento positivo, sabe? Sempre buscando trabalhar mais. Eu tô costurando máscaras, pintando bolsas, ecobolsas, enfim, a gente vai se virando”. O artesanato está disponível para compra nos perfis: @jukerexu e @arteindigena_maino.

Sobre o/a autor/a

8 comentários em “À revelia do patriarcado, ela construiu uma aldeia com as próprias mãos, no litoral do Paraná”

  1. Uma história de vida inspiradora. Grande guerreira!!! VIDA LONGA PARA ESSA CACICA E TODA MBYA GUARANI DESTA ILHA.

    GRATA por esta partilha de luta e resistência.

  2. Hálice Freitas, Djalma.

    Ontem, 24 de agosto, sem rumo e direção antes de dormir perguntei aos céus, ao universo como concluir minha segunda graduação em Filosofia? Apenas 3 disciplinas depois de cursar 47. Estava perdido, sem vontade após ter Covid leve. Como sou espiritualista, aberto aí universo, dia seguinte quando acordei no grupo do whatsapp que difícil vem texto desse teor. O pessoal é muito moleque, RS. Então, encontrei esse texto. Na metade da leitura, pedi aos céus aos mentores espirituais principalmente indígenas que protegesse essa Cacique. Tenho sonhos com xamãs, as vezes em meditação). Então, sentir que seria uma irmã. Foi minha primeira meditação pedindo proteção a todos. O texto me deu a resposta: vá e faça, não desista. Haverá difículdade, mas tudo vai dá certo. Sou grato pelo texto que a resposta que procurava.

  3. Que maravilha, fico até emocionado aqui em Belo Horizonte – Minas Geraes – BRaSil , com S. Continuem assim, guerreiras e guerreiros do BRaSil , vocês estão de parabéns. Abração apertado pra todos vocês. Nunca fui em nenhuma Aldeia Indígena. Sou doido pra ir, conhecer, vivenciar , registrar e descansar. Estou super estressado, não aguento mais de tanto barulho na cabeça, de motocicletas , carros , aviões, helicópteros, etc… Moro perto de uma avenida super poluída . É horrível. Mais uma vez, parabéns à Jess Carvalho , Juliana Kerexu e todas as mulheres deste imenso BRaSil , nem tão varonil.

  4. Parabéns pelo excelente texto trazendo a trajetória de Juliana Kerexu e a Comunidade do Povo Mbya Guarani. Tenho esperança que o Movimento dos Povos Indígenas se fortaleça nas lutas pelos seus Direitos conquistados na Constituição de 1988. Que os Povos Originários sejam vitoriosos contra a tese do marco temporal e outros retrocessos em curso.

    1. Francisco Marinelli

      Obrigado pelo exemplo! Temos muito a aprender com os povos tradicionais da nossa terra! Acredito que haverão momentos em que vamos precisar muito dos conhecimentos de nossos povos ! A sociedade “dita” civilizada está em colapso por ganância, disputas, orgulho e poder… fábrica de corruptos ! Saudações à todos os povos da nossa terra! Vocês são a verdadeira riquesa!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima