Multa aos brancos; chibatadas aos escravos negros: as leis racistas de Curitiba

Leis municipais distinguiam punições a brancos e negros e só liberavam festas com músicas europeias

A Câmara Municipal de Curitiba, que ainda hoje reluta em atender às demandas por igualdade racial, já editou leis claramente racistas. Em seus 328 anos de história, o período mais crítico em relação à forma desigual como os legisladores municipais tratavam os habitantes da cidade foi entre 1829 e 1888, quando foi assinada a Lei Áurea.

A informação consta no livro “300 anos – Câmara Municipal de Curitiba”, de autoria de Magnus Pereira e Antonio Santos, que mostra que as diferenças ficaram evidentes quando os vereadores passaram a debater dispositivos legais para combater os jogos de azar, o porte de armas e as danças e cantos populares. Homens brancos livres e escravos negros deveriam ser punidos da mesma forma? Após acalorados debates, a Câmara de Curitiba decidiu que não: enquanto aos brancos as penas estariam restritas a multas e prisão, os negros, pelas mesmas infrações, seriam submetidos a chibatadas. 

No registro dos debates da sessão que decidiu por essa diferenciação, a tese legislativa vencedora era de que a pena de prisão aos escravos seria prejudicial aos seus senhores. 

“O senhor Presidente mostrou que a pena de prisão imposta ao cidadão livre não era igual com a do escravo: que aquele sofria o castigo com a pena de prisão porém que o escravo nenhuma sofria e apenas ela pesava a seus senhores que não concorreram para o delito”.

A sessão seguiu, com a tese do presidente vencedora, mas emendada por um colega para que escravos menores de 17 anos não fossem punidos com chibatadas, mas sim com “palmatoadas”. Foram cinco votos favoráveis e dois contrários. 

Firmado esse entendimento, a Câmara de Curitiba passou a aplicar essa distinção em diferentes regulamentações, como, por exemplo, na proibição de banho em fontes públicas, editada em 1839. 

“Ficam d’ora em diante proibidas todas as lavagens de qualquer natureza que sejam nas fontes de beber de uso público desta vila; os contraventores sofrerão a multa de 4 a 8 mil réis, e do dobro nas reincidências. Sendo agregados ou filhos famílias recairá a pena em seus amos ou pais. Sendo porém escravos serão punidos com 25 açoites no Pelourinho da Vila que o seu senhor não queira pagar por eles a multa pecuniária”.

Festa, só de branco

Como Curitiba é desde sempre Curitiba, boa parte da produção legislativa municipal, desde o século XIX, se concentra em manter a cidade em ordem. “Brincadeira tem hora” era o que deveria estar inscrito em nossa bandeira, disse Paulo Leminski. Pelo que deliberou a Câmara em seu código de posturas de 1829, brincadeira sem hora, só a dos brancos. 

O espírito da lei: fandangos e batucadas, festas da quais participavam os negros, deveriam ser proibidas; os ágapes em casas de famílias brancas e ricas, não. 

“Tendo sido sem proveito todas as providências policiais até agora dadas, para se extirparem os batuques, que sem mais razão que a corrupção dos costumes, se têm arraigado neste Povo, e que dão azo à perpetração de muitos delitos que resultam da promiscuidade de ambos os sexos da classe imoral de escravos, e libertos, que não fazem tais ajuntamentos senão para dar pasto à devassidão e à desordem da crápula, com ofensa manifesta da moral pública e tranquilidade dos povos…”

Após estas considerações, decidiu a Câmara por proibir ajuntamentos de batuques que não tivessem licença prévia. A lei ainda foi clara ao dizer que as licenças não seriam concedidas “senão com muito justificado motivo” e que a proibição tinha endereço certo:

“Se não compreendem nas antecedentes disposições aqueles bailes ou funções, que por motivo de regozijo público ou particular a qualquer família tiverem lugar em casas decentes e entre gente morigerada”. 

“Morigerada”, em linguagem de dia de semana quer dizer  “que tem bom procedimento”; “bem-educado”. 

Com olhos de 2021, a vontade do legislador parece estar muito clara. Mas ainda havia confusões na fiscalização da lei. Por isso, o código de posturas, em 1864, teve que ser ainda mais claro e dizer quase que expressamente que música de branco, podia; o que não podia era música de preto.

“Os batuques ou fandangos de que trata o artigo 135 das posturas municipais em que for mister licença não se refere a bailes que com música se dançam valsas, quadrilhas, xotes, etc.”

Ainda segundo o livro de Magnus Pereira e Antonio Santos, conforme se aproximava o fim do século XIX, as diferenças de tratamento nas leis diminuíram. As penas a negros, por exemplo, passaram da chibata à palmatória e da palmatória à prisão. Esse passado, entretanto, nos conforma como cidade, como sociedade e como Câmara Municipal – que de 38 vereadores, tem apenas três negros.

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3 comentários em “Multa aos brancos; chibatadas aos escravos negros: as leis racistas de Curitiba”

  1. Gostei do artigo. Parabéns ao autor. Na parte que menciona “proibir ajuntamentos de batuques que não tivessem licença prévia”, temos a ideia de que o Estado tem que “meter o bedelho em tudo”. Até me lembrei daquela famigerada lei que exigia inscrição na Prefeitura para poder doar alimentos aos necessitados. Não mudamos muito como cidade. O higienismo segue forte.

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