Brasil está a um passo de acabar com a guerra ao usuário de drogas. O que isso representa?

O Plural conversou com advogados e especialistas no assunto para perguntar o que a possível descriminalização representa para o sistema legal brasileiro e também para os cidadãos

O Brasil está a dois votos de acabar com a fase mais drástica da “guerra aos drogas” no país, responsável por encarcerar uma geração de pessoas de baixa renda pelo porte de pequenas quantidades de droga. O Supremo Tribunal Federal não tem data para retomar o julgamento da ação que pode levar à descriminalização do porte de substâncias para uso próprio, mas dos sete primeiros votos dados, cinco foram na mesma direção: deixar de punir quem carrega uns poucos gramas, principalmente de maconha, com cadeia.

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O Plural conversou com advogados e especialistas no assunto para perguntar o que a possível descriminalização representa para o sistema legal brasileiro e também para os cidadãos. Além da redução do encarceramento em massa da população mais pobre (e majoritariamente negra, periférica), a opinião de quem estuda o tema é que se trata de uma mudança de compreensão do problema. A ideia de que o usuário deve ser tratado como criminoso não deu certo, e é preciso tomar algum novo caminho.

A “guerra às drogas”, caminho iniciado pelos Estados Unidos 50 anos atrás, na presidência de Richard Nixon, foi uma tentativa de enfrentar o uso de substâncias ilícitas na base do confronto. Todas as partes do processo (produtor, traficante e consumidor) passaram a ser vistas como criminosas e alvo de uma imensa máquina de repressão. Hoje, meio século depois, sabe-se que o problema de saúde causado pelas drogas não diminuiu e que esse modelo gerou grupos criminosos poderosíssimos, não só nos Estados Unidos mas também nos países fornecedores da droga.

No Brasil, a consequência mais trágica da adesão ao modelo da guerra às drogas talvez seja o encarceramento de imensas quantidades de pessoas pegas com pequenas quantidades de maconha ou outras drogas. O que já era grave se tornou ainda pior quando a Lei Antidrogas, aprovada em 2006, e que de início parecia um avanço, passou a ser interpretada de uma maneira ainda mais repressiva. A lei, com boa intenção, dizia que o portador não deveria ser preso em caso de posse de pequenas quantidades, para uso próprio. Porém, como a lei não estabelecia parâmetros, logo juízes punitivistas passaram a colocar na cadeia gente que tinha uns poucos gramas de maconha no momento do flagrante.

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Para a defensora pública Andreza Lima de Menezes, que coordena o Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal da Defensoria no Paraná, os resultados são claros. “O que posso dizer na minha experiência de 10 anos de Defensoria é que as pessoas presas nessas circunstâncias são atravessadas por vetores de exclusão como a pobreza, baixa escolaridade, informalidade e precariedade das relações de trabalho.”

O núcleo, segundo Andreza, mantém um projeto chamado Central de Liberdades, que providencia pedidos liberatórios para pessoas presas provisoriamente no Paraná em locais onde não há Defensoria instalada. Entre 2019 e 2023 o grupo analisou 1.265 prisões por tráfico. Quantas diziam respeito a pequenas quantidades? Todas.

“Acho que está mais do que claro que a guerra às drogas no Brasil significa guerra contra as pessoas pobres e, em especial, contra mulheres pobres (são 90% da população das unidades femininas)”, diz Andreza.

Avanço civilizatório

A mudança de compreensão sobre como enfrentar a questão das drogas não ocorre só no Brasil. E os resultados em outros países levam a crer que a mudança de trajetória pode causar um avanço importante.

“Quando afirmo peremptoriamente que há indícios da eficácia da liberação e regulamentação, não o faço com base em opinião pessoal, mas calcada em diversos estudos nacionais e internacionais que apontam neste sentido”, diz a advogada criminalista e professora universitária Juliana Bertholdi. “Para não recorrer a exemplos cultural e estruturalmente muito distantes do Brasil, podemos olhar para nosso vizinho Uruguai, cuja arrecadação de impostos e redução do tráfico aponta para as benesses da legalização (um passo além da descriminalização)”.

Ela diz, porém, que não se trata de mágica. O Uruguai, para ficar no mesmo exemplo, ainda enfrenta o desafio do mercado paralelo, que representa mais da metade da comercialização de cannabis no país.

A opinião é compartilhada por Frederico Brusamolin, advogado, especialista em Direito Penal, Internacional e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Para ele, a atual política proibicionista está fadada ao fracasso. “Além de estarmos desperdiçando recursos públicos e causando a morte violenta de milhares de pessoas todos os anos em virtude da repressão e da própria guerra entre facções, não há qualquer estudo que consiga comprovar que a utilização dessa política tenha conseguido diminuir o uso ou os altos lucros das facções criminosas com o tráfico de drogas”.

Ele lembra ainda que a busca por melhores mercados e o domínio sobre pontos de drogas ou o tráfico em determinadas regiões apenas aumentou o poder de facções que veem nas drogas um mercado bilionário e totalmente descontrolado.

E a adesão dos presos por uso de drogas a esses grupos, por meio de facções que atuam nos presídios, não é uma tese sem base, diz Andreza Lima de Menezes, da Defensoria.

“As prisões são locais em que as pessoas tornam-se ainda mais vulneráveis porque é um espaço em que não faltam só os afetos, faltam também condições mínimas para existência humana. Então tornar-se refém de facções não é um atributo só de quem é presa por pequenas quantidades de drogas, mas de toda pessoa presa que não recebe apoio familiar e a quem não se oferecem os serviços assistenciais previstos na lei”, afirma ela.

O que está em jogo

Mas qual afinal é esse possível novo caminho? A ação que o Supremo Tribunal Federal julga, e que hoje está com cinco votos favoráveis à descriminalização do porte, muda a compreensão da legislação antidrogas do país. A ideia é estabelecer um parâmetro mínimo para que o cidadão possa ser enquadrado como traficante – abaixo dessa quantidade, a pessoa é vista como usuário e o tratamento não é mais penal.

“Descriminalizar o porte da cannabis para uso pessoal não significa, em nenhuma medida, a completa legalização e muito menos a regulamentação do uso e comércio da droga no Brasil”, explica Juliana Bertholdi. “A descriminalização apenas impedirá que pessoas que possuam e/ou portem determinadas quantias, sem indicativo de traficância, não enfrentem consequências criminais. Esta distinção é importante pois criou-se a falsa impressão de que o julgamento pela descriminalização terá o imediato efeito de legalização e regulamentação comercial, com a possibilidade de compra e venda lícitos da substância, o que é de todo falso”.

Para Juliana, a descriminalização é um pequeno passo em direção a um enfrentamento mais assertivo e progressista na política de combate ao tráfico de drogas, mas muito ainda precisará ser feito em termos civilizatórios. Com relação à parametrização, diz a professora, “ela existe em diversos outros países para a diferenciação entre usuários e potenciais traficantes, não se trata de uma jabuticaba”.

“Em minha visão, ela é essencial para tentar afastar os vieses sociais na identificação do porte para uso pessoal e traficância, uma vez que tal distinção, hoje, é injustamente atravessada por vieses de classe e raça. Em bom e claro português: quanto mais vulnerável economicamente e mais escura sua tez, maior a chance de a posse ser considerada tráfico – e basta alguma experiência na área criminal para atestar este fato. A parametrização dos critérios de qualificação do usuário, apesar de não configurar solução completa, pode ser ferramenta importante na desconstrução dos efeitos destes vieses.”

Reação conservadora

Um dos problemas que pode se seguir ao julgamento do STF é uma reação conservadora no Congresso Nacional. Desde o momento em que Rosa Weber retomou o julgamento, deputados e senadores defensores da atual política passaram a se mobilizar para evitar a descriminalização do porte, fechando ainda mais o cerco aos usuários.

Porém, a probabilidade maior é que novas leis aprovadas depois da descriminalização, caso ela venha mesmo a ocorrer, venham a ser derrubadas pelo próprio Supremo – afinal, a ideia é que o tribunal diga o que diz o espírito da Constituição.

“Vejo essa movimentação da ala mais conservadora do Congresso Nacional como um gesto aos seus eleitores em uma briga de forças com o STF. Apesar de utilizar a questão das drogas como pano de fundo, a questão principal intentada é colocar frente a frente os poderes legislativo e judiciário para um conflito”, diz Frederico Brusamolin.

“Ao se ter em conta que a Constituição Federal garante a todas as pessoas a liberdade individual não vejo motivos para o Estado proibir que uma pessoa utilize drogas, especialmente porque não há qualquer lesão à sociedade por isso”, completa o advogado. “Se as pessoas são livres para consumir bebidas alcoólicas (droga lícita) e punidas criminalmente tão somente nos casos em que porventura venham a praticar um crime relacionado ao seu consumo (por exemplo, embriaguez ao volante, embriaguez ao volante com resultado morte) por que ainda punimos antecipadamente o usuário de drogas ilícitas única exclusivamente pelo seu consumo? Não seria mais coerente punir eventual excesso criminoso cometido?”

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Brasil está a um passo de acabar com a guerra ao usuário de drogas. O que isso representa?”

  1. João Victor de Mello

    A guerra às drogas é uma necropolítica que marca corpos negros e periféricos para a morte ou o encarceramento.

    Citando o livro de Angela Davis, Estarão as Prisões Obsoletas – entende-se que as prisões são instituições racistas. Chega a ser “irônico” que as prisões como vemos hoje vem de um processo de reformas sociais progressistas, fruto de um processo de humanização punitivista (Vigiar e Punir – Foucault) e que progride com políticas de caráter mais individualista e liberal, como a descriminalização da maconha ou pequenas posses. A sociedade precisa avançar para que corpos negros e periféricos não sejam alvos. Precisamos de mais, precisamos repensar o modelo opressivo do Estado.

    Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (África) – O Rappa

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