“Vortex” é um filme potente e sem concessões sobre o fim da vida

Diretor Gaspar Noé explora até o limite a cruel desintegração da vida na figura de um casal de velhos interpretado por Françoise Lebrun e Dario Argento

A velhice, a doença, a dor, a morte e, enfim, a escuridão e o nada. O filme “Vortex” exibe esse conjunto cruel de uma maneira potente e sem concessões. Afinal, trata-se do diretor Gaspar Noé, de filmes como “Irreversível” (2002) e “Contra Todos” (1998), que cava fundo na representação de desgraças humanas e da violência. É um realizador com a capacidade de combinar cores, movimentos de câmera e sons para criar a atmosfera mais triste que se possa imaginar.

Ao ler a sinopse de “Vortex”, em cartaz na MUBI, o espectador familiarizado com diretor argentino radicado na França sabe que está prestes a vivenciar um pesadelo.

“Vortex”

No filme, temos um casal de idosos que mora em um apartamento em Paris. Na breve cena de abertura, Elle (Françoise Lebrun) e Lui (Dario Argento) estão na sacada do apartamento. Eles parecem felizes, serenos. Tomam vinho e falam sobre a vida ser um sonho. Ela se refere à beleza da existência, talvez? Mas Lui tem uma visão diferente e, citando um poema de Edgar Allan Poe que trata da angústia de uma pessoa que está morrendo, diz que “a vida é um sonho dentro de um sonho”.

A partir dessa cena melancólica, o filme muda completamente. O diretor utiliza a tela dividida em duas partes, optando por plano longuíssimos e, com a ajuda de luz estroboscópica, compõe um ambiente com cores desagradavelmente intensas e claustrofóbico. Elle está avançando nos sintomas de demência e perambula com expressão facial que indica medo e uma permanente confusão mental, reconhecendo cada vez menos a realidade e a si mesma. O efeito visual e sonoro dessas cenas é hipnótico e desconcertante, a ponto de precisarmos, de vez em quando, olhar para fora da tela, a fim de que nossos olhos possam respirar.

Gaspar Noé

Lui sofre com o estado da esposa, mas refugia-se no escritório para escrever um livro e conversar por telefone com a amante, a quem diz amar muito. Podemos concluir que seu desejo é ficar longe da decadência e da morte. Em cenas como essa, o diretor comprova que a escolha pela tela dividida foi acertada: em um quadro, vemos Lui tentando concentrar-se no trabalho e entrar em contato com a amante; no outro, vemos Elle, sozinha, sentada ou percorrendo o apartamento, sem rumo, ou manuseando e misturando a enorme quantidade de remédios que ocupam uma parte da mesa de refeições.

Nem é necessário dizer que Gaspar Noé irá, ao longo do filme, explorar até o limite a cruel desintegração da vida de Elle e Lui, mostrando, entre outras coisas, o infarto mais dolorido e longo da história do cinema.

O casal tem um filho, Stephan, interpretado por Alex Lutz. É um rapaz derrotado pela vida, que se sabe incapaz de ajudar os pais. Ele sobrevive no tráfico de drogas e, enquanto utiliza um entorpecente, a outra tela mostra, concomitantemente, a sua mãe ingerindo as drogas legais. Stephan, que tem um filho, está devastado pela situação dos pais, em especial a da mãe.

Lebrun

Françoise Lebrun, atriz de extensa filmografia, incluindo o clássico “A Mãe e a Puta”, de 1973, é um assombro como Elle. O sofrimento que projeta é capaz de despertar sentimentos genuínos no espectador, como se se tratasse de sua mãe ou avó. E Dario Argento consegue dar a Lui a característica de um homem forte que luta para não ser tragado para o abismo juntamente com a esposa. É cruel e convincente.

Argento

Dario Argento é uma lenda do cinema de suspense e horror italiano, conhecido por filmes como “O Pássaro das Plumas de Cristal”, de 1970, e a primeira versão de “Suspiria”, de 1977. O cineasta atua no subgênero giallo (amarelo, em italiano), que geralmente trata de assassinos em série. O cinema giallo tem entre suas inspirações uma série de revistas italianas de suspense, consideradas “B”, que usam, em suas capas, com muito destaque, a cor amarela. Gaspar Noé, fã declarado da obra de Dario Argento, faz o amarelo “transbordar” de seu filme. E, combinando com o vermelho – o sangue abundante dos filmes giallo -, faz de “Vortex” quase um filme de terror. “Essa casa virou um inferno”, diz Lui a sua esposa.

Na última cena do filme, após quase duas horas e vinte minutos, o diretor arrasta o espectador para a “vida real”. Num ambiente arejado, e com a luz do dia, Gaspar Noé mostra, serenamente, o fim de todo o pesadelo.

Onde assistir

 “Vortex” está em cartaz na MUBI.

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