“Só estamos realmente vivos quando nos misturamos com tudo”, diz Marcelo Ariel

Para o poeta, ensaísta e teatrólogo que lança "Escudos" pela Arte e Letra, "somos todos gays, negros, mulheres, árvores"

“Quem não é o mundo colabora para a destruição dele, festeja a morte, principalmente a sua própria”, diz Marcelo Ariel nesta entrevista ao Plural por ocasião do lançamento do livro “Escudos – Cinco raps e um samba escritos com Cruz e Sousa seguido de A vida de Clarice Lispector”.

O paulista Ariel é poeta, ensaísta e teatrólogo. Entre suas obras, se destaca “Ou o Silêncio Contínuo – Poesia Reunida 2007–2019”, publicado pela Kotter e vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional em 2020. 

Marcelo Ariel

Mais recentemente, ele publicou também “As Três Marias no Quadro de Jan Van Eick” pelo prestigioso Círculo de Poemas, clube de assinatura de livros criado pelas editoras Fósforo e Luna Parque. Na entrevista a seguir, ele fala sobre “Escudos”, recém-lançado pela Arte e Letra, e sobre as circunstâncias em que escreveu o livro.

Sem se preocupar em dar uma sinopse, você diria que seu livro “Escudos: seguido de A vida de Clarice Lispector” é sobre o quê?
A primeira parte se chama “Escudos”, trata-se de uma conversa com o livro “Broquéis”, de Cruz & Sousa, formando cinco raps e um samba, uma forma de presentificar a força da obra de um dos maiores poetas negros do mundo em todos os tempos que nasceu em Desterro (SC). O Brasil  precisa merecer Cruz & Sousa! Na segunda parte, temos “A vida de Clarice Lispector”, uma novela onde me misturo com a autora de “Água-Viva”,  é um livro sobre a alteridade, sobre como a diferenças no fundo se completam, o diálogo das diferenças se chama mundo e rejeitar as diferenças é rejeitar o mundo e a natureza. Nós só estamos realmente vivos quando nos misturamos com tudo, com o que é diferente de nós, com o que não é nosso eu, não pensa, nem age como nós! Somos todos gays, negros, mulheres, árvores e etc. Porque essa é a composição dos mundos no mundo. Quem não é o mundo, colabora para a destruição dele, festeja a morte, principalmente a sua própria.

Na literatura, quais são suas maiores influências? E como essas obras e autores influenciaram você?
Influência é um dos nomes da gripe, não tenho “angústia da influência”, nem “ansiedade da influência” em relação a nada, me misturo, pratico a mestiçagem em todos os níveis com praticamente tudo que me afeta, no grande sentido do termo, com tudo que se torna para mim, um grande afeto, um afeto alegre, paixões alegres, como recomendava Espinosa, no lugar de paixões tristes, afetos tristes. Você está me perguntando sobre nomes? Talvez seja isso… Além dos óbvios Cruz e Sousa e Clarice Lispector. Sou alegremente afetado por Guilherme Gontijo Flores, chegamos a escrever juntos um livro em forma de renga, quando um poeta escreve um poema e outro responde com outro poema [o livro se chama “Arcano 13” e saiu pela editora Quelônio]; Nina Rizzi, Julia Raiz, Tatiana D’Angieri, jovem autora de um romance belíssimo chamado “Luz Selvagem” e muitas outras vozes que estão brotando do chão, como flores no asfalto, a imagem é gasta mas verdadeira. Flores no asfalto. 

Você poderia falar um pouco sobre as circunstâncias em que escreveu “Escudos: seguido de A vida de Clarice Lispector”?
Foram dois livros breves, concisos que foram escritos ao longo de cinco anos. Houve uma conversa com o poeta negro Ronald Augusto que me ajudou muito na composição do “Escudos”. As circunstâncias nas quais um intelectual negro trabalha no Brasil não são as mais favoráveis. O racismo é muito forte, é muito forte no Paraná, em São Paulo, onde vivo, é sempre uma luta, cada livro publicado é uma pequena vitória! Não escrevo para transformar meu nome e meu rosto em marca de sucesso, acho a cultura do sucesso uma doença mental social, as circunstâncias são as de uma luta contra o neoliberalismo progressista em vigor no Brasil desde a gestão do banqueiro ministro da economia do “Meu nome é Legião” e atualmente vigora com os representantes dessa entidade chamada “mercado” que se metamorfoseia em diversas formas de genocídio que fazem de qualquer tentativa de esboçar um estado social, uma negociata a seu favor e contra nós. Você deve estar achando estranho, um poeta, escritor preferir falar de política ao invés de falar de seu próprio ego, as circunstâncias levam a uma luta contra o próprio ego  em favor de um corpo comunitário, entenda quem puder…

Na sua opinião, ao escrever, qual é sua principal habilidade? E qual é sua maior dificuldade?
A habilidade que um escritor negro deve ter é a de permanecer dignamente vivo sem ser capturado pela “máquina de cooptar e domar diferenças” do neoliberalismo progressista, nem pela “máquina das fábricas de apagamento da subjetividades e singularidades”. O ato (e não lugar) de fala preconiza também que o pensamento se torne ato. Principalmente ato comunitário. Artistas são povo, são comunidade e não empresas. Pensemos em liberdade, autonomia, quilombismo, fuga, destruição dos símbolos e sistemas do racismo etc. Pensemos em uma arte híbrida, capaz de dar um curto circuito nos sistemas gramaticais da opressão. Fui coagido pelo sistema burocrático da ditadura fiscal jurídica a abrir um MEI, mas não sou MEI, não somos nossos RGs nem CPFs, somos cosmos-animais e árvores que andam. 

Que argumento você usaria para convencer alguém a ler o seu livro?
Não gostaria de convencer ninguém a ler meu livro, convencer é primo de seduzir que vêm do latim e significa enganar. Sinto que os livros procuram seus leitores ou o que você procura, te acha… Uma pessoa que entre distraidamente na Livraria Arte & Letra ou qualquer outra e talvez seja tocada por meu livro, não sei quem… A rede de leituras é infinitamente maior do que a internet, é a leitura que irá iluminar o mundo quando todas as redes digitais caírem por causa dos ciclones, chuvas, tsunamis, calores de 57 graus e tudo o que está dobrando a esquina dos anos e séculos futuros. Meu livro é apenas um grão de pólen na tempestade. 

Livro

“Escudos: seguido de A vida de Clarice Lispector”, de Marcelo Ariel. Arte & Letra, 80 páginas, R$ 44.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima