Renato Janine Ribeiro: a extrema-direita construiu um afeto autoritário. Precisamos de um afeto democrático

Escritor, professor e ex-ministro da Educação estará em Curitiba nesta terça-feira (9)

Nesta terça-feira (9), às 19h, Renato Janine Ribeiro leva para o palco da Capela Santa Maria o tema Espiritualidade, metafísica e religiosidade no Brasil contemporâneo, com mediação de Caetano Galindo. A conferência é parte do evento literário Diálogos Contemporâneos em Curitiba. Os ingressos são gratuitos e a transmissão ao vivo pelo YouTube conta com intérprete de LIBRAS.

Escritor, professor da USP e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro preside atualmente a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O autor de “A Sociedade Contra o Social” e “Ao Leitor sem Medo”, dentre outras obras, permitirá o público traçar panoramas com informação histórica e dados atuais. 

Em entrevista ao Plural, Renato Janine Ribeiro fala das eleições de 2022 e sobre afeto na política, na religião e na educação.

O senhor tem uma preocupação com o afeto na política, e sobre como é possível que a democracia tenha esse aspecto mais afetivo. O populismo tem muito mais facilidade com isso. Até onde isso teve peso na eleição de Bolsonaro? Como pode pesar em 22?

Eu tenho um livro que eu publiquei, creio que em 2005, chama se O afeto autoritário. Procurei partir de um ponto que acho muito curioso, que é como nas novelas, que são uma espécie microcosmo do Brasil, muitas vezes há uma relação afetiva, porém autoritária, entre patrão e empregada doméstica. Embora as novelas da Globo tenham feito muito pela Igualdade de Gênero, Igualdade Étnica, a valorização de minorias, como por exemplo pessoas que têm Síndrome de Down, elas mantiveram esse tipo de autoritarismo na relação doméstica, que é uma herança da escravidão. Em algum momento, tem uma frase meio cortante do patrão dizendo para a empregada voltar para cozinha, que é o seu lugar; não ficar falando muito na sala. Lembro de uma cena, curiosamente com Antonio Fagundes, que é um ator progressista, dizendo isso. E então pensei muito em como no Brasil o autoritarismo se reveste de uma visão afetuosa e afetiva. Não é por acaso que dois egressos da ditadura, como Paulo Maluf e Antonio Carlos Magalhães, usaram nas suas propagandas, respectivamente em São Paulo e na Bahia, a imagem do coração.

Então a questão que se coloca, muito me parece, é como se pode constituir um afeto democrático na política. Não é contraposto ao afeto autoritário por injeções maciças de racionalismo, é como você pode constituir um afeto democrático pelo qual as pessoas tenham uma relação de mais de cooperação, mais amistosa, de mais respeito aos outros. E sem a menor dúvida, a vitória de Bolsonaro tem muito a ver com esse autoritarismo que ficou embutido no país, uma ideia de que as pessoas terão, de alguma forma, segurança, se confiando a uma figura autoritária.

Isso eu pensei um pouco no caso da eleição de Collor. Collor era alguém que vinha da elite e, no entanto, uma parcela significativa dos mais pobres votou nele, achando que ele ia melhorar a condição dos mais pobres e que ele era o candidato contra as elites. Na ocasião, pensei numa frase importante, que praticamente define a fé, que é o credo quia absurdum: creio porque é absurdo, o que é um certo paradoxo, porque à primeira vista pareceria que eu creio porque não é absurdo, mas justamente a fé tem a ver com a crença no improvável, no absurdo. Então é totalmente absurdo um homem rico querer ser quem vai salvar os pobres. A convicção de que Collor poderia fazer isso era uma opção pelo milagre.

Muitas pessoas votaram em Bolsonaro não porque ignorassem o seu compromisso com o autoritarismo, a promessa de matar pessoas, as ofensas a homossexuais, mas justamente por isso mesmo e talvez esperando que, apesar disso tudo ou com isso tudo, por causa disso tudo, ele pudesse fazer um governo que fosse bom para a sociedade, uma sociedade que tinha ficado esgotada da política. Porque 2013 foi um ano de manifestações que mais ou menos foram a descoberta da política pelos brasileiros. A ideia de que a solução de tudo, do transporte coletivo, da educação, da saúde passava pela política, e depois foram tantas decepções com a reeleição de Dilma, com as promessas dos fatos que promoveram o seu impeachment, decepções com o governo Temer, com Aécio Neves, que tinha se apresentado como opção honesta. Foram tantas decepções, que se escolheu a opção anti-política, a opção de uma suposta moral que viria na negação da política representada por Bolsonaro e seu aliado Moro. E isso trouxe o resultado que podia se esperar: na hora em que se deixa de pensar que a solução está na política, se passa a pensar que o problema são os políticos e se esquece que mesmo para os políticos, a solução é política.

Então eu penso que esse é o momento em que é muito importante a gente pensar não apenas em quais foram as mentiras, os enganos, os embustes que favoreceram a ascensão da extrema direita no Brasil, mas também pensar de que maneira a extrema direita conseguiu atender a uma demanda de afeto que os partidos tradicionais não têm. Curiosamente essa demanda de afeto na política seria atendida por Lula, que foi impedido de concorrer pelo Moro, a fim de garantir a eleição de Bolsonaro em 2018. E ela é atendida também pelo próprio Bolsonaro. Mas justamente a direita que se auto intitula centro, a direita tradicional, o PSDB e outros partidos não são capazes de trazer um atendimento a essa dimensão afetiva.

Outro tema que parece próximo a esse é o das igrejas neopentecostais, que têm uma relação de proximidade e representatividade com o eleitor que quase mais ninguém tem. A esquerda tende a ver essa relação como espúria, muitas vezes. Isso é um erro?

Não conheço muito sobre as igrejas neopentecostais, mas de qualquer forma a opção pela por uma fé pentecostal pode ser entendida de duas maneiras. Pode ser entendida como um desejo de milagre, porque são religiões que estão mais próximas de uma experiência imediata do sagrado do que o catolicismo. Então alguém que não quer por quaisquer razões que sejam, a experiência do sagrado pelo candomblé ou pela umbanda, que têm também uma relação muito próxima com o sacro, uma pessoa nessas condições pode optar pelo pelo pentecostalismo ou por outras vertentes que prometem essa relação quase miraculosa com o divino.

Outra possibilidade é também entender que algumas dessas religiões trouxeram uma esperança para as pessoas, quer dizer, pessoas que estavam muito desesperadas começam a encontrar espaços diversos de associação, espaço de sociabilidades, espaço de valorização do trabalho, do sucesso pelo trabalho, espaços em que as mulheres adquirem um certo protagonismo. Espaços de preservação do matrimônio graças a essas sociabilidades proporcionadas por essas igrejas. Essa é uma possibilidade que tem que ser vista. Quando uma solução não é a melhor, a gente tem que perguntar qual foi o problema para o qual ela se apresentou como solução e tentar dar uma solução melhor para o problema. 

O senhor pôde atuar brevemente como ministro da Educação no governo Dilma. Imagino que a máquina burocrática seja imensa e aflitiva, mas talvez o senhor tenha tido uma noção privilegiada de um dos grandes problemas nacionais. Sempre se fala que o investimento e a aposta em educação é que mudariam o país, como ocorreu na Coreia do Sul, Finlândia etc. É investimento mesmo o que falta, e como mudar isso?

De fato ser ministro da Educação foi uma experiência difícil, e ao mesmo tempo, muito importante, porque é um dos ministérios mais importantes, talvez num certo sentido seja até o mais importante do país. É o ministério que mais define o futuro do Brasil, muito embora a gente saiba que o Ministério da Economia tem um poder desmedido. A gente vê que o nosso futuro depende muito da educação, como depende da cultura, da atividade física não competitiva, dessas áreas todas que oferecem uma visão de futuro, incluiria também o meio ambiente. Então nós temos ministérios do futuro e a Educação é um desses ministérios poderosos. Mas é muito difícil, é um ministério muito grande, com muitas tarefas. Uma única secretaria dele, de educação básica, é responsável, ainda que indiretamente, por 40 milhões de crianças e adolescentes da creche até o final do ensino médio. É uma parte grande da população brasileira que é afetada pelo MEC.

O investimento e a aposta em educação são muito importantes para o Brasil. Nós temos experiências internacionais boas como a da Coreia do Sul e da Finlândia, mais talvez a da Finlândia, que está mais próxima culturalmente a nós. Mas é bom lembrar um episódio que me foi relatado, há pouco tempo, de um grupo de brasileiros educadores que foi à Finlândia para saber o que eles teriam, o que queríamos aprender com eles e os finlandeses ficaram espantados, disseram: “Uai, vocês não aprenderam com o Paulo Freire?” Nós não podemos esquecer que um dos maiores educadores da virada do século 20 para o 21 é Paulo Freire, que é um brasileiro. E o que Paulo Freire nos ensina? Ele nos ensina que a educação tem que estar ligada com as condições de vida da pessoa. Você não se limita a ensinar a pessoa a soletrar, compor sílabas, a ler, escrever e fazer contas. Você mostra como isso tudo muda a vida da pessoa, e acredito que esse é o ponto decisivo.

Falta investimento sim, falta bastante. O Brasil coloca 6% do PIB historicamente na Educação, chegou a esse ponto nos últimos anos da demanda de governos eleitos democraticamente. Tem gente que diz que a Alemanha coloca 6% também e pergunta como educação alemã então é  melhor. O PIB per capita da Alemanha é cinco vezes maior que o do Brasil – ou era há dois três anos atrás, quando publiquei meu livro A Pátria Educadora em Colapso. Como nossa economia piorou e o câmbio mudou muito, pode até ser mais do que isso. Então, per capita, a Alemanha investe pelo menos cinco vezes mais que o Brasil na educação. É claro que você precisa aumentar o investimento na educação, mas precisa fazê-lo de maneira a educar as pessoas com coisa útil e própria para elas.

Há muita gente que diz que a eleição do ano que vem será uma escolha entre civilização e barbárie. Para quem estuda Hobbes, essa afirmação parece dar muito o que pensar. O que seu lado acadêmico nos diz sobre o que está em jogo?

Na eleição de 2018, que estavam em jogo a civilização e a barbárie dadas várias declarações de um dos candidatos que, por exemplo, não se pejava de atacar a educação, a igualdade de gênero, até mesmo a igualdade étnica, a igualdade das pessoas. Eu mesmo disse então que era um confronto entre civilização e barbárie. Eu diria que agora a situação ficou quase que uma luta entre vida e morte. O descaso do atual governo pelas vidas dos brasileiros e das pessoas em geral é surpreendente. O fato de que não só não tenham sido tomadas medidas necessárias para coibir o avanço da pandemia, tais como máscaras, incentivo à higienização das mãos, além disso o desperdício de milhões de kits de testagem que poderiam ter detectado pacientes assintomáticos mas transmissores de Covid, não só tudo isso, mas o descaso e mesmo o combate à vacinação são aspectos que mostram um lado muito preocupante do momento que o Brasil está vivendo e então eu creio que o que nós temos em jogo agora é a defesa da vida.

Você citou Thomas Hobbes, o filósofo que eu mais estudei. Thomas Hobbes fala assim na guerra de todos contra todos e como você supera essa situação que poderíamos chamar de barbárie – não é um termo que ele emprega –, como você supera isso pelo advento do Estado e das relações políticas e sociais. Mas poderíamos também dizer que a principal razão para pôr fim à guerra de todos contra todos é preservar as pessoas da morte violenta, da morte que viria antes da data normal que uma pessoa viveria e temos isso no nosso horizonte, temos 600 mil brasileiros pelo menos que morreram antes da sua data precisa, antes da data em que poderiam morrer, porque não foram tomadas as medidas necessárias de cautela e também de vacinação em relação a elas. 

O senhor é um pensador de renome no Brasil, mas sabe como os livros de debate sério são difíceis de vender, ao passo que o debate rasteiro dos comentaristas simplificadores à la Jovem Pan acaba sufocando a verdade. Como reverter isso?

Muito obrigado pelo elogio. E sim, é verdade que o debate é rasteiro, vende muito bem, é verdade que existe uma frase de um jornalista americano Mencken que diz que para toda questão complexa tem uma solução simples e errada. Eu acho que é justamente essa esperança em soluções simples que remetem um pouco à ideia de milagres de que eu falei na primeira resposta, que está muito em jogo no Brasil, quer dizer, de como nós podemos fazer com que o país viva de uma maneira melhor. Nós precisamos realmente ter um nível melhor de educação e não só educação formal, educação universitária e tudo mais, mas também a própria educação política.

É muito preocupante que o Brasil, quando vai discutir política, se limita à questão da corrupção. A corrupção é um problema e, sem a menor dúvida, tem que ser combatida. É errada eticamente, prejudica a sociedade economicamente, mas opções erradas em termos políticos podem causar muito mais danos. Você veja, se comparar o que a Operação Lava Jato, que se vendeu como um produto de combate à corrupção, o que ela conseguiu de retorno de dinheiro comparado com o prejuízo que ela causou ao PIB, é um saldo extremamente negativo. Nós temos que entender que a grande questão é que os partidos têm a obrigação de lançar candidatos competentes e honestos. Mas a escolha entre eles tem que ser uma escolha legitimamente ideológica de valores. Eu quero o quê? Eu quero um governo que faça políticas sociais de redução de desigualdade ou quero um Governo que deixe mais ou menos cada um por si? Essa é uma grande opção que democraticamente deve ser feita sem impedir candidatos favoritos de concorrer, prática comum em ditaduras e regimes não democráticos. Penso que se melhorarmos a educação política, se ensinarmos mais as pessoas a discutirem programas do que a destilarem seu ódio, o Brasil pode ganhar muito com isso.

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