“O patriarcado não vai acabar por decreto”, diz a historiadora Mary Del Priore

Mary Del Priore encerra o evento literário Diálogos Contemporâneos nesta terça (30) com palestra sobre violência contra a mulher

Nesta terça-feira (30), às 19h, a escritora e historiadora Mary Del Priore traz à Capela Santa Maria o necessário tema “A construção da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. A vencedora do prêmio Jabuti 2021, com a obra Sobreviventes e Guerreiras, vem fechar a primeira edição do evento evento literário Diálogos Contemporâneos em Curitiba. A palestra também será transmitida ao vivo pelo YouYube, com intérprete de Língua Brasileira de Sinais.

Em entrevista ao Plural, Mary Del Priore fala sobre o livro premiado, a importância de resgatar o papel das mulheres na história, feminicídio e resistência.

Sobre o que fala seu livro Sobreviventes e Guerreiras, que acabou de ganhar o prêmio Jabuti?

O Sobreviventes e Guerreiras é um livro que caminha um pouco na contramão. Temos tido notícias permanentes de violência contra a mulher, feminicídios, molestamento, esse virou o grande tema no mundo todo, porque o número de violências contra a mulher subiu, inclusive, nos países desenvolvidos. A gente tem notícia disso na França, na Itália, na Espanha, em toda a parte. O livro mostra que, malgrado essa situação de violência, as mulheres sempre souberam resistir, daí vem o título Sobreviventes e Guerreiras.

Eu mostro, ao longo da história, como a despeito dos vários patriarcados que vão se dar as mãos aqui no Brasil – e eu também insisto que o  patriarcado é um fenômeno transcultural que vem desde o paleolítico superior com a divisão de tarefas entre homens e mulheres –, malgrado o fato de termos um patriarcado que vem da Europa, outro que vem da África e vai encontrar aqui os dos povos originários, as mulheres através do seu trabalho e através do letramento foram dando vários tiros no pé desse patriarcado. E justamente faço essa história ao longo de 500 anos mostrando como é essa emancipação feminina numa sociedade, embora desigual, embora escravista, mas que ofereceu brechas para as mulheres e, sobretudo, a questão do letramento e da educação abriram para as mulheres uma série de campos onde elas podem atuar, não só se defendendo, mas se emancipando, se permitindo caminhar com as próprias pernas, fazendo suas escolhas. E eu dou ali vários exemplos ao longo da história.

A tese do Steven Pinker é de que a civilização diminui a violência. Isso seria uma tendência também no caso da das mulheres e aqui no Brasil?

Gosto muito desse livro que trata da questão da racionalidade, mas o problema é que estamos vivendo um momento de extrema vulnerabilidade. A sociedade está numa crise econômica muito grande, nós temos uma desigualdade flagrante – basta andar nas ruas das nossas capitais pra ver o número de pessoas na rua mendigando. Temos também uma espécie de virilidade tóxica muito evidente nas figuras políticas e essa virilidade tóxica acaba transbordando para a população como um exemplo. Um mau exemplo, óbvio, mas um exemplo, e tudo isso faz com que a aparência da violência nos aterrorize o tempo todo. Mas eu diria que as mulheres têm sabido resistir e que no Brasil, em particular, nós temos um judiciário que está extremamente atento às violências contra as mulheres e tem criado, sem cansaço, leis que coibam essa violência. Desde os anos oitenta, o Brasil vem tendo um comportamento exemplar. E, hoje, magistrados e juízes, que são, em grande maioria, mulheres, estão extremamente preocupados com essa questão.

O problema, ao meu ver, é a questão do preconceito que muitas vezes é alimentado  em casa pelas próprias mães quando elas incentivam a virilidade violenta dos filhos. ‘Ah bateram em você, meu filho, vai lá e bate no seu amiguinho’. ‘Homem não chora’. Essas fórmulas que implicam nessa virilidade que está, a meu ver, completamente fora de moda são muito nocivas. E o problema também é a escola, onde às vezes os próprios professores também têm preconceito de gênero, então acham que a menina tem que ser tratada de um jeito, o menino de outro. Eles não trabalham a questão da igualdade e da tolerância. Esses são pontos que nós ainda temos que aprimorar. Mas sob o ponto de vista jurídico nós estamos mil anos luz à frente de muitos países civilizados. 

A sociedade tem tido, de fato, alguns avanços jurídicos, como a Lei Maria da Penha. Mas quanto à cultura da população? Há chance de uma mudança rápida ou apenas no longo prazo?

Nenhuma, porque o Brasil não está investindo em educação e isso é a base dessas mudanças. Nos países onde há educação, não é que não haja violência. Existe a violência, mas existe uma consciência da violência. O problema é que aqui no Brasil o nosso nível de educação é tão baixo que as pessoas se permitem ser violentas com palavras, com gestos e não só com as mulheres, entre si. Sem um trabalho grande no campo da educação, fica muito difícil. 

Você tem uma pesquisa interessante sobre as mulheres na história. Qual que é a importância de recuperar o papel da mulher? 

Eu acho que, sobretudo, a de mostrar pra ela como ela já é, sempre foi e pode ser corajosa, brava se reinventar; como ela tem elementos criativos, sobretudo numa cultura mestiça como a brasileira, que recebeu aporte de todo lado. Não só da Europa, das culturas mais diversas. Tivemos imigração italiana, espanhola, alemã, austríaca, ucraniana, japonesa, e tivemos também uma presença de africanos muito variada, porque quando de se fala de África é bom entender que essa África é plural, que eram nações muito diversas que trouxeram contribuições. O escravo não chegava aqui feito uma página em branco, ele tinha ofício, ele tinha saberes, ele traz esses saberes com ele e vai aqui cruzar também com os saberes das nações originárias, dando uma cultura mestiça onde a mulher tem um papel muito importante. Ela sempre foi chefe de família. As famílias plurais do passado confirmam que a chefia feminina sempre esteve presente na nossa cultura. 

Qual a melhor forma de combater a violência masculina?

Eu tenho trabalhado muito a participação dos homens nessa discussão e digo sempre que o patriarcado não vai acabar por decreto, que é preciso convidar os homens a falarem do mal que o patriarcado faz a eles, porque desde sempre o patriarcado elege como paradigma masculino o homem forte, o homem que dá ordens, o homem que grita, o homem que é obedecido. Temos que chamar os homens para essa conversa para perguntar a eles e ouvi-los falar de como essa violência é construída. Por que o homem tem que ter sempre dinheiro? Por que ele tem que levar o dinheiro para a casa? Por que ele tem que ser o chefe de família? Por que ele tem que ter o carro do ano? Isso tudo também cobra para o homem um preço muito alto. Então é preciso convidá-los a participar dessa conversa. Isso já tem sido feito em muitas capitais. Aqui em Curitiba mesmo tem grupos trabalhando essa coisa da violência masculina, entender de onde vem isso. E essa seria, eu diria, a melhor maneira da gente começar a combater essa tendência da violência masculina.

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