É comovente assistir a cenas que mostram o quanto o acesso à cultura no Brasil ainda é um privilégio. O pior é que essa história não é inédita, é reprisada incansavelmente na periferia de cidades como Curitiba e em comunidades que são carentes de tudo, inclusive de arte e lazer. Mas vira e mexe aparece uma iniciativa com potencial para mudar o enredo de muitas vidas, o Festival Cinenaguá – Clássicos do Cinema em Paranaguá está prometendo ser uma delas.
O festival acontece no litoral paranaense, na cidade de Paranaguá e na Ilha do Mel, é uma mostra de filmes importantes para a história da sétima arte e que também tem na programação ações educativas, como oficinas em escolas e bate-papos com artistas. As sessões parnanguaras são de dois tipos, em ambiente fechado, no Teatro Rachel Costa, e ao ar livre, no gramado da Estação Ferroviária de Paranaguá – com direito a um telão de 12 metros de largura por 7 de altura. A traquitana, seja pelo tamanho ou pelo ar diferentão, desperta a curiosidade de quem passa por ali, bem do jeito que aconteceu com Bruna da Silva.
Alguns meses antes, quando o evento ainda estava na fase de pré-produção, ela já morava em frente à estação, sob as marquises dos estabelecimentos de comércio no outro lado da praça. Observou a movimentação e pegou um panfleto com a programação, depois abordou um rapaz da equipe do festival para saber do que se tratava. Mesmo assim, continuou desconfiada: “Não sabia que iria ser grátis. Eu achei que teria que pegar um ingresso, alguma coisa para poder entrar.”
Dá para entender. Frequentar teatros, visitar museus ou galerias, assistir a espetáculos de música ou dança, e – sim, ir ao cinema – é algo cotidiano para muitos; contudo, o sentimento de pertencimento a esses lugares não é para todos. Entre outras dificuldades, quem sempre foi privado dessas experiências se sente em alguma medida um estranho no ninho ao tentar ter acesso à cultura.
Dress code
Na noite de abertura do Cinenaguá, Bruna não entrou na Estação nem sentou em qualquer uma das cadeiras reservadas para quem desejasse ver o longa-metragem “O homem que copiava” (2003). Depois de três meses fora da casa da mãe e vivendo em situação de rua, ela achou mais confortável assistir ao filme do seu cantinho, do lado de fora. “Eu não me senti… com roupa apropriada, sabe?!”
No dia seguinte, junto com a vontade veio o convite do marido. Entraram e sentaram no fundo da plateia, dava para ver os dois juntinhos, o braço dele ao redor dela, que apoiava a cabeça no ombro do companheiro. Eles até poderiam passar despercebidos, mas o Maximus não deixava. O filhote de cachorrinho que ela trouxe roubava a cena durante a sessão de “Conta comigo” (1986). Só que logo o casal resolveu ir embora, a suspeita era que o problema estava nas legendas, talvez não soubessem ler. Não era para tanto, dava para acompanhar o texto, mas quando o filme é nacional ou dublado tudo fica mais legal.
Bruna conta que sempre teve uma vida difícil, aos 14 anos de idade parou de estudar e saiu pela primeira vez de casa. Teve uma filha aos 19 anos e voltou para casa da mãe, onde ficou até pouco tempo. A menina tem 9 anos, estuda período integral e mora com a avó, a saudade é compensada pela ideia de que a filha siga por outros caminhos, deixando de lado coisas pelas quais a mãe passou e passa.
A primeira vez
Indo em direção à saída, ao invés de críticas, ela teceu elogios sobre o evento, com brilho nos olhos foi dizendo que era maravilhoso e divertido, que era muito “massa”, por misturar no mesmo lugar pessoas com mais condições financeiras e outras com menos posses. Seguiu falando que deveriam fazer mais coisas desse tipo, com atrações gratuitas em lugares como aquele, um espaço público recentemente reformado. Não deixou de lado o pedido por mais programação infantil na cidade e emendou: “Eu nunca fui ao cinema!”
O motivo, segundo Bruna, foi o mesmo da primeira saída de casa, a agressividade do pai. “Eu nunca procurei essas coisas, porque elas acontecem quando os filhos estão em casa e dizem ‘vamos ao cinema’, aí pegam todos os filhos e vão ao cinema. Eu nunca tive isso.”
O clima triste parecia irreversível, entretanto Maximus deu um jeito de aliviar um pouco. O fujão foi dar um passeio e voltou no colo da atriz Mayana Neiva, convidada do evento. Bruna não conseguiu segurar a emoção ao reconhecer a estrela segurando o filhotinho. Os olhos encheram de lágrimas: “Eu não acredito que é ela, a Desirée! [personagem interpretado por Mayanana novela “Ti-Ti-Ti” (Rede Globo, 2010-2011)]”
O casal saiu, mas voltou. Foram vistos em outras sessões, como a do filme “Tubarão” (1975) e também na plateia de “Faça a coisa certa” (1989). Parece que chegamos ao ponto de virada e a expectativa é por um final feliz, pois Bruna pretende levar a filha para assistirem juntas um filme da programação infantil do festival. Tomara que leve.
Cinenaguá – Clássicos do Cinema em Paranaguá
Data: 1º a 10 de março de 2024
Locais: Estação Ferroviária de Paranaguá, Teatro Rachel Costa e Nova Brasília – Ilha do Mel
Outras informações no site oficial do evento e pelo perfil no Instagram @cinenaguá.
Patrocínio Master de Terminal de Contêineres de Paranaguá e patrocínio de Cattalini. Apoio de Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Paranaguá, Prefeitura de Paranaguá e Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE. A Realização é da Lei de Incentivo à Cultura – Ministério da Cultura/Governo Federal Brasil – União e Reconstrução. Grafo Audiovisual e Oxigênio são as empresas produtoras do festival.
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Que maravilha! Mostra a importância das ações culturais inclusivas e a importância do profissional de dublagem, que torna o conteúdo realmente acessível.
Excelente!! Parabéns!