“Penélope” tece no palco um teatro mais poderoso que o panfletário

A grande sacada do espetáculo da La Lettre Criação é enfrentar o patriarcado sem levar a mesmice para a cena

Falar das feridas que ainda estão abertas em nosso tempo com sensibilidade é algo raro. Mas o espetáculo “Penélope” – produção independente da La Lettre Criação, com texto de Lígia Souza e direção de Nadja Naira – prova que a reflexão pode ser protagonista no teatro contemporâneo sem trazer para a cena o discurso panfletário. 

“A gente é parecido porque nenhum dos dois conseguiu ser exatamente aquilo que esperavam que a gente fosse.”

Ela (Uyara Torrente), personagem na peça “Penélope”.

O texto da peça escancara como ainda hoje é reservado às mulheres o papel da Penélope grega (aquela da Odisseia de Homero), alguém que fica à espera, cuidando do lar e da família. Só que isso vem embalado na criatividade da subversão, mostrando o abismo cheio de mágoas que se abre nos relacionamentos quando é ela que vai e ele fica. Nesse caso, ela e ele são dois irmãos que há muito não se viam, o reencontro desperta lembranças, mas também o ódio e a culpa. Ela é a grande personagem da trama, alguém que vai armada com a coragem de dizer sim para as suas vontades, para a vida, que personifica o brado feminista: “Toda mulher pode ser o que quiser”. E paga o preço diante do olhar do outro por se lançar a “epopeias incríveis”. 

A direção de Naira dá a “Penélope” sensibilidade enquanto mantém a plateia atenta, usando os artifícios do teatro contemporâneo. Os atores podem ser flagrados recebendo quem está chegando ao teatro, dá para ficar constrangido porque um personagem fala diretamente para você enquanto encara seus olhos, ou ser surpreendido por cenas que invadem a plateia (não precisa ter medo, ninguém do público é puxado para o palco). O bacana é que não é só isso, tem muita emoção em jogo na montagem desse texto que, na verdade, fala da opressão do patriarcado sem virar um tratado em cena, é uma história sobre pessoas e que ganha vida com pessoas.

“Porque eu acabei fazendo exatamente o que você deveria ter feito… Você é a filha, é mulher, teria mais jeito com eles, com a situação.”

Ele (Pablito Kucarz), personagem na peça “Penélope”.

O espetáculo também é cheio de sacadas inteligentes. Para quem fica, está o baú, dele saem lembranças e mágoas, para quem volta (mas é livre) estão as rodas, o carrinho de bagagem que leva tudo o que a personagem considera essencial para a vida. O cabo do microfone (que traz um quê do ruído da vida real para a cena pois não é apenas cenográfico) vira o fio que amarra você ao lugar em que está e ainda vira símbolo do emaranhado de sentimentos e pensamentos que podem habitar dentro de cada um de nós. Dá para sentir o contraste entre a visão de mundo de cada personagem até pelos ouvidos, ora se escuta “Pies Descalzos, Sueños Blancos”, na voz de Shakira, e ora a batida é do Prodigy com “Smack My Bitch Up”. Dá até para apostar na sagacidade da escolha musical ao pensar no empoderamento vivido hoje por Shakira em oposição à revolta que o lançamento de “Smack My Bitch Up” (expressão que significa mais ou menos “espanque minha vagabunda”) causou em organizações feministas.

Como a produção é independente, a pouca grana parece deixar alguns pontos mais frouxos (como o figurino, alguns adereços e o uso de uma porta ao fundo do palco do Teatro Zé Maria que parece um déjà-vu). Mas são poucas coisas e outros pontos fazem a gente esquecer disso facilmente, como é o caso da atuação de Pablito Kucarz no papel do irmão. 

“Eu estou aqui, não?

Ele (Pablito Kucarz), personagem na peça “Penélope”.

Kucarz está tão confortável em seu personagem que gera sentimentos controversos, você tem vontade de dar um abraço nele e, em seguida, apertar o seu pescoço. Ele segura a plateia nos rompantes de violência e nos momentos de desolação sem demonstrar esforço, não dá para imaginar outro ator tão bem ali. Certamente o trabalho de preparação exigiu bastante dele e o legal é que o público não sente isso.

“Penélope” (teatro adulto)

O espetáculo fez seis apresentações, entre abril e maio, no Teatro Zé Maria, com casa lotada todos os dias. Não há data confirmada para próxima temporada. Outras informações no Instagram da companhia.

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