“O guardião de nomes” fala do poder herdado numa prosa apegada a detalhes

Dá pra ver que o cara – o autor, Leonardo Garzaro – ficou remoendo frase por frase, buscando a execução perfeita

Desde 7 a.C., puxando de memória o que lembro do texto de introdução da “Ilíada” da Penguin, a do Brasil não a norte-americana, contar histórias tem um papel crucial no desenvolvimento da civilização. Cantos sobre a bravura de determinados guerreiros, por exemplo, têm a capacidade de fortalecer um conjunto de homo sapiens – fazê-lo sentir-se como se da união de sujeitos brutões, bons de briga mesmo, assassinos vintage, dependesse a continuidade da vida de todos em local X, o local desse suposto heroico conjunto hipotético agindo em prol da ideia de que a união faz a força, por mais que hoje seja fácil a gente apontar o dedo pra essa frase e dela rir, rir pra caralho como se tivéssemos superado a proposição quase xamânica do clichê, e a partir desse sentimento de união um vínculo quase metafísico fosse forjado – para ele, o conjunto de homo sapiens que canta bravuras de guerreiros. E, a partir desse elo, a disposição de cada um dos homens que resolveram ir defender certa causa aumentasse em um milhão por cento, sem fontes acadêmicas para corroborar minha tese, sinceras desculpas a todos os seguidores cegos da escola dita de ensino superior, e que esse aumento exponencial fizesse com que a batalha fosse vencida – não por que X é melhor que Y, apesar de que isso também conta, mas principalmente porque X estava mais sólido, unido, uno, uno é a palavra, do que Y. Porque X não era mais X somente enquanto um indivíduo um, um só e nada mais que um, um só, mas sim porque X se tornou Legião, um vários: tornou-se todos e ninguém, um mais um mais todos, haja ego, a representação metafísica de uma força conjunta, a união faz a força, movido – o conjunto de homo sapiens é movido – por um sentimento primal de pertencimento. Um sentimento essencial. O romance “O guardião de nomes”, do Leonardo Garzaro, te põe a pensar. 

Resenhas que não obedecem à sacra organização do jornalismo, direto ao ponto no primeiro parágrafo (quê, quem, quando, como, onde, porquê), são um saco sem igual. Eu mesmo não costumo dar chances a um parágrafo exibicionista como esse aí de cima, muito menos aos textos que se acham tão inteligentes a ponto de terem parágrafos engraçadinhos no meio; parágrafos autoconscientes, como se o autor fosse metido a David Foster Wallace. Mas, se você ainda está aqui para finalmente ler frases sobre o livro citado, e ler mais delírios provenientes da leitura, vamos lá: há um porquê sólido para a ladainha de abertura. Troque cantos e todo o raciocínio de bando por algo um pouco menor, ao mesmo tempo que grande igual, que seria a mecânica de uma família tradicional brasileira do século República-ainda-é-novidade. Troque cantos e bando por ordens e empregados, pegou aí? A mecânica de uma família que manda em determinado lugar a partir de um só figurão soberano, esse é o ponto de partida e o coração do livro; o coração do livro é o poder herdado, o poder de quem exerce o poder por ter nascido assim; poder de quem não conhece nada além dele, o poder. Um barão tem poder. Um barão é poderoso. O barão Álvares Corrêa tem poder. O barão é poderoso. Um tipo que soa quase caricato, vendo aqui agora do século 21, mas que representa bem tudo que sucedeu nestas tristes terras de gentes tristes, diga três vezes: o cara, esse Barão que é figura indispensável para entender a condução do romance do Léo, é a figura de homem, a figura de masculino, que está até hoje cravada no imaginário popular. É o xucrão inflexível, dono não só de terras (e seus lucros exorbitantes) como das pessoas (que nela habitam; que cuidam da Terra do reizinho, ele mesmo, o barão é o reizinho; e que por ser o reizinho faz com que as pessoas, empregados de vários tipos, curvem-se diante dele, reizinho, e às vezes tenham o prazer de exercer a morna rebeldia mas na maioria das vezes não, não exercem nada além da vontade do reizinho, do barão), dono talvez até do Deus em que (finge, aposto que finge, a fé no arquétipo real de Cristo é de quem doa, não de quem acumula) crê, crer, crença, fingir que crê, apegar-se à crença como forma de exercer poder, crença essa fervorosa até quando a mulher se mata e precisa virar santa, e certamente dono da mulher – o barão é dono da mulher – que aceitou tornar-se parte de seu legado depois da saída de cena do poeta Antônio, amor original – e que se matou enforcada, a mulher do reizinho, logo no começo do livro, em um dos momentos mais belos de uma prosa apegada aos mínimos detalhes, tipo que dá pra ver que o cara – o autor, Leonardo Garzaro, Léo – ficou remoendo frase por frase, buscando a execução perfeita. Não é legal esse jogo de opostos? Um suicídio belo. Belamente narrado. Essencial para a sustentação do livro. 

E o principal ponto aqui, voltando à argumentação: o barão reizinho é dono de nomes. Responsável por nomear não só a gente toda como todos os animais que em suas terras habitam. O que isso te diz? O que alguém que faz questão de nomear tudo que está na terra e no céu, que meio que toca a vida em prol dessa história de ter uma palavra final sobre os outros (isto é, nomear; dar nomes pétreos como pétreos são os mandamentos modernos da Constituição; não que sejam seguidos, os mandamentos, ninguém falou sobre isso; decidir como o cavalo de pinto pequeno, ou o cavalo de pinto imenso, pode ser aquele que fodeu a Lori Lamby ou também o que fodeu sei lá qual atriz de um filme B que você procurou por meios escusos e acabou se satisfazendo, gozando no próprio umbigo, bem como também pode decidir – o barão pode decidir, o barão sempre decide – o nome do homem de pinto pequeno, ou o homem de pinto imenso; todos eles, os homens e os cavalos, vão ser chamados daqui até a eternidade por meio do nome escolhido por um homem gordo e rico, o barão Álvares Corrêa, que nunca pôs a mão na massa, que nunca acordou dolorido, que desfruta da vida a partir da humilhação de outrem, seja homem ou mulher; aos homens, surras físicas; às mulheres, carícias indesejadas para começar, pinto duro muito, tesão de cachaça, no orifício que tenha sido escolhido no dia, barganha não é opção), como que esse alguém supostamente poderoso – barão A.C. – recebe qualquer confiança? Como que dá pra acompanhar a pergunta se teve um parágrafo imenso no meio? Dá um tempo. Vamos lá: como que dá pra confiar, ou melhor, por quê que é que na história da humanidade toda, desde sei lá quando até esse hoje sinistro, alguém em qualquer dia, seja ele de chuva ou sol, dificuldade ou bonança, tristeza suicida ou alegria igualmente suicida, pois maníaca, esse alguém resolveu confiar num homem tão doente por poder que a tudo tinha de nomear? Não é fácil assim. 

Vendo de fora, ver de fora é sempre fácil assim, o repúdio contra o figurão – barão Álvares Lobo-Mau – é automática. Fácil. Mas um livro não é isso. Não deve nunca ser isso, isso de entregar tudo de bandeja, estabelecendo facilmente mocinhos e vilões. E tá aí algo que o texto do Léo não faz. Além de demonstrar pleno domínio da escrita, amarrando as tramas no tempo em que elas devem ser amarradas, até quase flertando com um lance meio policial no meio, a condução da prosa é feita por alguém que claramente está preocupado com o resultado final. O comentário pode parecer tosco, simplório, mas você se surpreenderia com o quanto isso, isso de se preocupar com o ritmo do texto, vem se tornando raro. Com o quanto o discurso panfletário vem substituindo a boa e velha ficção nua e crua, não sei se é bem isso que quero dizer, mas quero falar de uma ficção que se preocupa em narrar uma história e, para isso, para narrar a história, não vai se furtar de soar repugnante se preciso; e que, principalmente, vai fazer – ao longo de mais de 400 páginas do romance – uma contínua tentativa de arroubo estético. Que não irá se render aos discursos fáceis do mundo virtual, até porque no mundo do romance não tinha mundo virtual ainda, esses que criam – os discursos em mundos virtuais, hoje, o leitor de hoje se beneficia ao raciocinar sobre como tudo foi, desperta melhor para o que é – tantos ídolos efêmeros, mas vai se manter fiel a uma execução complexa, quiçá barroca (como diz um dos blurbs da edição em português), que recompensa quando o leitor bate a mão na cabeça e se dá conta: é isso que tá rolando agora. Entendi. Nada é de mão beijada no livro do Léo, e é ótimo que assim seja.  

“O guardião de nomes” é ponto fora da curva, voltando à história: as críticas entram no universo ficcional do autor conforme a trama se desenvolve, sem pressa, com naturalidade. A preocupação principal, fica bem claro, não gira em torno de construir um livro sobre o comportamento bizarro do masculino – apesar de também prestar esse papel muito bem, da melhor maneira possível, sutil como um Machado de Assis –, mas de mostrar como qualquer indício de poder corrompe. Como essa ideia de poder está presente não só na mente do miserável, do que quer se vingar de algo (anti-herói, magoado, o anão Próspero), mas também do poderoso, o poderoso típico que quer ficar ainda mais, e para sempre, mais poderoso: do que quer manter alguma espécie de legado – e poder, por consequência. Do que, mortal, quer ser imortal. 

No livro do Léo, a manutenção dessa insana pulsão de poder indissociável de todos que pensam, comem e cagam, se dá por meio do nome; do ato de nomear. Como se fosse algo místico, se pensarmos na forma com que o guardião de nomes – personagem do romance, filho sem nome do barão Álvares Corrêa – escolheu lidar com o ofício, o de dar nomes, ou como se fosse uma sentença de morte ou bonança, ambas ruins iguais porque extremas, já que só quem se propunha a buscar um novo nome com o guardião de nomes era aquele tipo prestes a se matar, ou então – ainda! – dar continuidade a um legado por piada, como o filho do sétimo filho sem nome do Barão o faz – chamar uma  mulher de João, por exemplo. Ou aquele tipo que busca depositar todas suas esperanças em seja lá quem for, e que portanto faz disso tudo de novo nome um ato essencial e definidor, incontornável, da vida dele – do tipo que busca depositar todas suas esperanças em seja lá quem for, pois é tudo sobre ele, nada sobre quem vai buscar o nome, e sim sobre ele que vai dar o nome, sacou? – e também da vida de sua vítima, digamos, da pessoa para quem ele – o tipo que busca novo nome – foi lá, até o guardião, buscar um novo nome. Na história do Léo, o esqueleto da história do Léo, é esse: buscar novo nome para alguém. Quem se disporia a nomear? Alguém que quer controle. Quem busca? Alguém necessitado. O resultado, diga lá. Quando a fome encontra a vontade de comer, o que acontece? 

Por quê, afinal, fiz mais abstrações do que entrei na história? Ou melhor, nas histórias, já que apesar de ter uma linha bem delineada que conduz o livro não se trata somente de uma linha bem delineada ao todo, mas sim de várias ramificações – sobre nomes, principalmente, ou talvez essencialmente; consequências de um nome, também; vontades geradas a partir de um nome, com certeza, vide o pobre do Próspero anão (figura central do livro, ao lado do convenientemente chamado Pródigo, filho do sétimo filho do barão, muito bem construída); vontades capadas, ou oposto aqui, estimulada, por causa de um nome –  que pintam um quadro do Pollock, pois a vida é um quadro do Pollock. 

A vida é isso aí sim, um quadro do Pollock, e o livro do Léo não podia deixar de ser um quadro do Pollock, que é a vida: porque ele se propôs a criar um mosaico de vivências, puxado por um personagem X (o Barão, depois o filho do sétimo filho do barão Egomaníaco [sic? Não] Alves), e fez desse mosaico um microcosmo cativante, bastante convidativo enquanto literatura, apesar de repelente aos leitores que buscam lições para a vida. Fez um livro bom, enfim. Não é o tipo de narrativa edificante, muito pelo contrário, ou moralista, muito pelo contrário (a fabilidade do ego, tão explorada no livro, é o que mais gostei), ou que tenta dar uma de rebeldona antissistema, muito pelo contrário. É tudo isso em uma só coisa toda, vai por mim, sem possibilidade de reduzi-la em uma confortável caixa. 

E por que é assim? Porque a gente é assim. Porque a gente é vil, mesquinho, vingativo, bondoso, fiel, infiel, amigo, traidor, carente, autossuficiente, paranoico, relaxado, dogmático, materialista, e duplos assim até a vaca tossir, até o anão do livro do Léo conseguir o que quer, até os filhos registrados do barão conseguirem derrubar o Pródigo, filho do filho sem nome do barão, até enquanto o teatro  da vida continuar, o rancor consumir, o rancor sumir, até quando o teatro se tornar tão incômodo que é preciso suspirar fundo para seguir em frente. Até tudo isso. Até que tudo isso. É tudo isso aí. E é mais. Tenho certeza de que determinados dramas vão soar, bater, diferente para cada leitor. Eu escolho não abrir o jogo. Um pouco, vá lá.

Há uma linha do romance, que eu chamo contos do guardião de nomes, que traz histórias edificantes. Tipo contos com moral da história. E são boas. Porque o Léo é engraçado. Novamente, se isso soar banal, não se engane: o humor tem caminhado bem longe da ficção há um bom tempo; a ficção brasileira tem caminhado para a ruim (e premiada) panfletagem há um bom tempo. Não da ficção do Léo. Ele consegue manter uma certa narrativa sólida em meio às ironias dos personagens, às vezes personagens que parecem nem saber que estão sendo irônicos/bobos mesmo, bobos é a definição, daí entra o papel do narrador que o autor paulista escolheu para contar a história: o onisciente em terceira pessoa. Aquele que passeia por eras tantas, gerações várias, sentimentos todos. Não vou mentir: não é o meu tipo favorito de enfoque. Mas, vá por mim, o Léo consegue ser dinâmico, construir personagens diferentes: a César o que é de César. E todos esses Césares, sendo bem sincero, não são de nada – o poder é falível, o livro mostra bem, e é engraçado quando a pessoa que depende do poder se fode. Quando você se propõe a estudar os mecanismos do poder, afinal, e deixar bem claro o patético disso tudo do que é ilusoriamente ter poder ou – estupidamente – querer um poder de rei, poder herdado, coisa exatamente que o Léo faz em seu “O guardião de nomes”, não há mais ilusões. Quando você se propõe a esmiuçar o significado de ter poder, de querer poder, de ter poder ilusório, de falsamente buscar poder quando na verdade se estaria melhor vivendo um cotidiano dito medíocre mas livre de neuroses, não há mais ilusões. Quando você consegue contar uma história instigante, quase policial em dados momentos, sempre muito filosófica e volta e meia hilária, macabramente hilária, é porque você venceu. Em algum nível, e seja lá qual é seu demônio, você venceu. Você escreveu um livro. E não só um livro, mas um livro belamente equilibrado. Um livro de quem leva a escrita a sério. E que pede, como toda escrita séria, um leitor sério: disposto a desvendar o labirinto proposto pelo autor. A fina ironia. A fragilidade dos personagens que parecem durões. Se você arriscar, não vai se arrepender. 

Livro

“O guardião de nomes”, de Leonardo Garzaro. Rua do Sabão, 476 páginas, R$ 60. Romance.

Sobre o/a autor/a

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