Uma vez que você se interesse por literatura a ponto de começar a ler livros sobre o assunto, existe uma palavra que começa a aparecer bastante: alteridade.
Dizem que não se deve citar dicionário em texto de jornal, ainda mais quando se está a um Google de distância de qualquer definição, mas ainda assim, neste contexto, sacar uma definição do Houaiss não parece má ideia. Diz o dicionário, no verbete alteridade: “Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto”.
Lendo, você tem a chance de ser um outro. De ter contato com alguém diferente de você. O cinema não faz isso, o teatro não faz isso, as artes plásticas raramente fazem isso. Para a literatura, o poder de colocar o leitor no lugar de outra pessoa é elementar, é principal engrenagem que a faz funcionar.
Literatura
“Ler é um dos grandes prazeres da solidão”, escreve o crítico Harold Bloom (1930–2019), no livro “Como e por que ler”. E continua, na tradução de José Roberto O’Shea: “Ler nos conduz à alteridade, seja à nossa própria, ou à de nossos amigos, presentes ou futuros”.
Quando Bloom diz que ler nos conduz à nossa própria alteridade, ele parece considerar que os livros são um pouco como pessoas: eles permitem que a gente se conheça melhor. Convivendo com elas (as pessoas) ou com eles (os livros), você tem chance de descobrir como pensa, de entender o que é importante ou não na sua vida.
“Literatura de ficção é alteridade e, portanto, alivia a solidão”, diz Bloom. “Lemos não apenas porque, na vida real, jamais conheceremos tantas pessoas como através da leitura, mas, também, porque amizades são frágeis, propensas a diminuir em número, a desaparecer, a sucumbir em decorrência da distância, do tempo, das divergências, dos desafetos da vida familiar e amorosa.”
O crítico americano argumenta que os livros permitem então que a gente conheça mais pessoas, de maneira íntima. Além disso, parafraseando Bloom, a literatura fornece conhecimento não só sobre os outros e sobre nós mesmo, mas também sobre as coisas da vida.
Colégio Medianeira
Em Curitiba, a conversa sobre literatura e alteridade tem ao menos um caso exemplar: o do Colégio Medianeira. A escola se tornou conhecida por se preocupar com livros e leitura, e chegou a criar uma feira literária para incentivar alunas e alunos a ler.
O bibliotecário Mario Borges, responsável pelo acervo de livros do Medianeira – e por uma série de atividades permanentes de incentivo à leitura –, explica que o interesse da escola pela literatura tem a ver com os valores que ela considera importantes. “Com a leitura, é possível conscientizar o estudante sobre o cuidado com a natureza e com o outro”, diz Borges. “Além de conhecerem a si mesmos, graças ao desenvolvimento da capacidade de interiorização e ao cultivo da vida espiritual, os estudantes devem desenvolver um consistente conhecimento e experiência da sociedade e de seus desequilíbrios.”
Como um exemplo de livro usado para fazer estudantes exercitarem esse olhar para o outro, o bibliotecário cita “As memórias de Eugênia”, de Marcos Bagno, indicado para o sétimo ano do ensino fundamental. A história fala de patrimônios históricos, culturais e naturais. “A protagonista e narradora é Eugênia, uma árvore que presencia o crescimento de uma cidade e as consequências do progresso”, diz Borges. “Os estudantes aprendem sobre a importância de valorizar a história, a cultura e a preservar a natureza objetivando o progresso, sem desconsiderar a sustentabilidade, entendendo que os recursos naturais são limitados, assim como aprendem a valorizar a própria vida humana.”
Antídoto contra a solidão
O escritor David Foster Wallace (1962–2008) encarava a literatura como um antídoto contra a solidão – esse é inclusive o nome do livro que reúne algumas de suas melhores entrevistas, publicado pela editora Âyiné. “Existem alguns poucos livros que eu li e que me transformaram em outra pessoa, e acho que toda boa literatura de alguma maneira aborda o problema da, e age como um antídoto contra a solidão”, disse Foster Wallace. E ela funciona como um antídoto contra a solidão porque, com frequência e nos melhores casos, a literatura coloca o leitor dentro da cabeça de outra pessoa e permite que ele experimente o mundo através dessa outra pessoa.