Imagem de santa embranquecida na Capela da Glória revela confusão histórica

Tudo começa com o restauro de uma imagem da Santa Efigênia e mais de cem anos de culto a uma santa negra

O que parecia ser um caso grave de racismo envolvendo a Capela Nossa Senhora da Glória se revelou uma história confusa sobre troca de santas.

A igrejinha na avenida João Gualberto, em Curitiba, passou por um processo de restauração que terminou em 2018. Depois foi a vez das imagens dos santos também passarem por restauro, entre eles uma imagem da Santa Efigênia – e aqui a história começa a complicar.

Porque Santa Efigência voltou para a capela com um novo tom de pele, mais claro. Paroquianos e membros da comunidade ficaram estupefatos. Tudo indicava que uma santa negra tinha sido embranquecida. Logo nasceu a crença de que a cidade estava vendo um caso de racismo em comunhão com falta de respeito à história, pois todas as imagens abrigadas no templo são simbólicas da sociedade curitibana no fim do século 19.

Capela da Glória

Só para situar: a Capela Nossa Senhora da Glória, ou simplesmente Capela da Glória, surgiu no final do século 19 – em 1896 – por vontade de Maria Dolores Leão da Veiga, da família que fundou a Leão Júnior (aquela empresa que fez a Coca-Cola servir chá mate), e teve suas portas fechadas devido ao péssimo estado em que se encontrava nos anos 2000, na mesma época em que a doação para a Mitra da Arquidiocese de Curitiba foi oficializada. Mas ressuscitou, agora como Unidade Especial de Interesse de Preservação (UIEP), para oferecer conforto aos curitibanos com celebrações religiosas e também programação cultural.

Se você visitar a capela, vai encontrar imagens de cinco santos. A Santa Efigênia ocupa um dos altares laterais. No altar principal, fica Nossa Senhora da Glória. O outro altar lateral e os nichos guardam estátuas de Nossa Senhora das Dores, São Francisco de Assis e Santo Agostinho.

Santa Efigênia

Santa Efigênia foi uma princesa da Etiópia importante para a difusão do cristianismo na região de Núbia. A imagem guardada pela igrejinha curitibana foi doada pela Baronesa do Serro Azul, conforme explica o pesquisador da história da Capela da Glória, Khae Lhucas Ferreira Pereira. “Ela [Santa Efigênia] representava os ideais abolicionistas do Barão, inclusive uma filha deles se chamava Ifigênia”, diz Pereira, que é também assessor da Diretoria de Patrimônio da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) e coordenador do Museu de Arte Sacra da Arquidiocese de Curitiba (Masac). Apesar do nome da Santa ora aparecer com E, ora com I, trata-se sempre da mesma Santa.

Essa informação sobre a grafia aparece em um dos volumes da obra “Contribuições historicas e geographicas para o diccionario do Paraná”, de Ermelino Agostinho de Leão, publicada em 1926. Ermelino era irmão de Maria Dolores Leão da Veiga, então devia saber do que estava falando. Mas faltou ele fofocar um pouco mais, falar se as estátuas eram italianas ou francesas, porque as duas possibilidades se alternam em reportagens sobre a capela. Faltou também oferecer detalhes que solucionassem os mistérios que cercam a estátua de Santa Efigênia.

A revelação do restauro

Ao se tornar dona da pequena igreja, a Mitra também se tornou proprietária das imagens que moram ali. Contudo a lógica envolvendo os santos é diferente da aplicada ao prédio, que por ser uma UIEP, segue critérios específicos para restauração conferidos por órgão públicos. As estátuas se tornaram bens móveis da Arquidiocese. Assim sendo, no processo de restauro das estátuas de gesso, não houve participação da prefeitura ou da FCC. O serviço de restauro foi contratado pela Mitra e executado pela especialista Luciane Ribas, que tem no currículo cursos realizados no Instituto Kepha, do Vaticano, e da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

As imagens seguiram uma a uma para o processo que durou cerca de dois anos, a partir de 2018. Em uma publicação do prefeito Rafael Greca no Facebook, dá para ver o altar vazio de Santa Ifigênia em junho de 2020. Ela foi a última a ser restaurada.

Em entrevista por telefone, Luciane Ribas afirmou que o restauro seguiu as técnicas consagradas na área, buscando o resgate do original com intervenção mínima. No caso da Nossa Senhora das Dores, por exemplo, foi removida uma repintura, a partir da prospecção de camadas retiradas com uso de bisturi, e se chegou à cor vermelha original do manto. No caso da imagem de Santa Efigênia, ela passou por etapas comuns a todas as outras da capela, como limpeza, fixação da policromia, tratamento de fissuras e rachaduras, nivelamento e reintegração pontual para resolver perdas de material.

Quando a última peça chegou para restauração, justamente a da Santa Efigênia, houve uma revelação: a cor da pele original não era negra, mas teria ficado negra, segundo explica a restauradora. Para completar, a imagem não tinha os atributos nem a cor de manto da Santa Efigênia, conforme o estudo histórico feito durante o restauro. A conclusão era surpreendente: a estátua não podia ser de Santa Efigênia.

É uma reviravolta na história: a estátua não teria embranquecido, mas sim escurecido com a ação do tempo sobre o verniz, segundo Ribas. E o restauro revelou a cor original da imagem. “Essa santa, em especial, recebeu um verniz que oxidou e se tornou escurecido com o tempo”, diz. Ela também explica que não existia repintura no rosto da imagem, mas apenas o verniz usado sobre a pintura do gesso. Todo o processo está descrito no relatório do restauro a que o Plural teve acesso. Veja algumas das fotos que fazem parte do documento. 

Preocupada com as questões raciais implicadas na descoberta, a restauradora conversou com a assessora da Mitra de Curitiba, Maria Helena Eyng, e com a equipe de advogadas da instituição antes de seguir com a remoção do verniz. Nas considerações finais do relatório, Ribas afirma não se tratar de Santa Efigênia devido às características e aos atributos da imagem restaurada – e lista outras possibilidades. Como não descobriu que santa era aquela, termina sugerindo: “Este estudo requer continuidade”.

O mistério

Se não era Santa Efigênia, quem era? Após vários contatos, a assessoria de comunicação da Mitra respondeu, por mensagem no WhatsApp, que a imagem é de Santa Eliana. Como até então as conversas com o Padre José Aparecido Pinto, indicado pela assessoria como administrador da Capela da Glória, sempre fizeram referência à Santa Efigênia, a reportagem perguntou à instituição como se chegou à conclusão de que a imagem é uma representação de Santa Eliana. E a Mitra respondeu: “Alguns especialistas apontam que há 8 mil santos reconhecidos oficialmente pela Igreja. Outros estudiosos apontam que, entre santos e beatos, a Igreja Católica possui mais de 20 mil nomes. É comum se confundir ao citar santos que não são tão conhecidos”.

Sobre como e quando descobriu se tratar de outra santa, a Mitra disse apenas que, conforme o relatório de conservação e restauro, a iconografia não remete à freira etíope Santa Efigênia. O texto da mensagem da Mitra ainda diz o seguinte: “No entanto, pode ter sido escurecida a imagem pela pessoa que doou à Igreja para que representasse Santa Efigênia, pois deveria desconhecer suas características gerais na época. Em nossas pesquisas atuais, por enquanto, Santa Eliana é a que mais representa a iconografia da estátua em questão, ainda sem ter a exatidão da informação”.

Desaparece uma santa

Nessa confusão centenária, parece que foi deixada de lado a história da relação dos curitibanos com uma das primeiras santas negras da igreja católica. Pois, independentemente da cor ou dos atributos da estátua, ela era tratada como Santa Efigênia há pelo menos um século e era reconhecida como tal pela comunidade. Esse dado é mais do que suficiente para complicar a decisão de simplesmente rebatizar Santa Efigênia com o nome de Santa Eliana.

Na opinião do pesquisador de relações étnico-raciais e direitos humanos Sergio Luis do Nascimento, esse episódio com a imagem de Santa Efigênia não envolve racismo estrutural, mas é um caso de embranquecimento. Porque ele apaga uma questão histórica, cultural e social relacionada a uma santa negra. “É a referência a um indivíduo miscigenado que desaparece do nosso imaginário”, diz Nascimento.

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6 comentários em “Imagem de santa embranquecida na Capela da Glória revela confusão histórica”

  1. Silvano Dos Santos

    O correto a fazer, nesse caso, é colocar uma imagem canônica de Santa Efigênia e colocar essa imagem da Santa Efigênia ao lado, afinal, os santos não brigam no céu. Faria um altar conjunto.

  2. Valnei Francisco de França

    Em minha opinião, a imagem complementa a homenagem. Então, considero que colocar uma estátua com a real aparência de Santa Efigênia é o correto. Inclusive, apoiado em ações que recuperem a História da Santa Efigênia, na Abissínia, Etópia. Essa era a homenagem inicial e pretensão da doação .

  3. A população curitibana deve exigir que uma outra imagem verdadeira de Santa Efigênia seja colocada no local onde durante todos esses anos os devotos da Santa tem feito suas devoções, se este local era destinado para Santa Efigênia e que continue sendo assim, e que tenha um quadro explicativo para a população junto a nova imagem verdadeira de Santa Efigênia.

  4. Me surpreenderia se uma santa branca houvesse ficado com a pele preta visto tratar se de curitiba uma cidade racista…que história estranha essa.

  5. Que tal colocarem uma nova estátua de Santa Efigênia? Assim, preserva-se a obra original como foi concebida (e a ciência por trás da cultura) e não se perde a referência e o respeito pela santa negra.
    E se fosse feito um concurso para isso? Geraria muitas imagens da santa negra, uma para a capela da Glória e outras para existirem por aí, em outros espaços.

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