Fé como uma forma de “Cura”

No Festival de Curitiba, espetáculo de Deborah Colker busca uma saída para sofrimentos físicos e espirituais

A minha noção de tempo desapareceu. Uma hora e quinze minutos se transformaram em um instante. Essa foi a minha impressão ao assistir o espetáculo “Cura”, dirigido por Deborah Colker, no Festival de Curitiba.

“Cura” nasce da inquietação da autora ao se deparar com a realidade vivida pelo neto Theo de 12 anos, portador de uma doença capaz de causar feridas pelo corpo, chamada epidermólise bolhosa. O texto introdutório exibido em uma tela na abertura é narrado pelo próprio Theo e conta a história do Orixá Obaluaê, dando o tom do que será relevado durante os próximos 75 minutos de espetáculo.

A inserção de elementos extraídos de religiões africanas, como a trilha sonora desenvolvida por Carlinhos Brown por exemplo, mostra a importância do aspecto religioso para a construção da história abordada por Deborah. “Cura” apresenta o lado vulnerável do ser humano que busca na expressão da fé uma saída para sofrimentos físicos e espirituais.

Fragilidade

A composição da primeira cena conta com a presença de apenas um dançarino no palco e um tecido branco, causando mistério e hipnotizando o público. O trabalho corporal desenvolvido nesse ato é extremamente importante, mostrando leveza e ao mesmo tempo envolvimento, sufocamento, fragilidade humana e desamparo.

Ao longo do espetáculo, 14 bailarinos e bailarinas se revezam em cena – com a capacidade de criar uma sincronia perfeita, ou de se apresentar em solos, ou em duplas.

O mais interessante no trabalho corporal dos dançarinos é a capacidade de gerar a ilusão de que podem voar. Parece, aos olhos leigos, algo tecnicamente muito difícil de se executar. Os movimentos realizados em plano alto, como quando uma dançarina parece caminhar no ar com o auxílio de outros dançarinos, dão a sensação de que eles desafiam a lei da gravidade.

Força

Além disso, as músicas escolhidas para o espetáculo são entoadas em línguas como o iorubá, aramaico, hebraico e o próprio português, além de outros dialetos africanos, trazendo maior força ao trabalho em cena.

Outro ponto que considerei extremamente importante foi o uso do silêncio em meio à peça. Em uma determinada cena, os dançarinos realizam movimentos sem nenhum som, o que nos faz pensar que o movimento por si só, associado ao silêncio, causa reflexão e instiga a curiosidade.

Descontrole

São muitos os outros pontos que chamam a atenção. Seja pelos movimentos executados no chão ou mesmo nos que são realizados em uma espécie de rampa. Nela, uma das bailarinas mostra o descontrole sobre o próprio corpo em sofrimento, gerando um sentimento catártico (lembrei de diversas crises de ansiedade em que eu queria livrar-me de mim mesma).

Para estudantes de Artes Cênicas, o espetáculo “Cura” é uma aula completa sobre a força que o trabalho corporal do artista tem sobre o público. Além disso, a religião, a busca do ser humano por uma forma de lidar com algo que não tem cura, nos revela que a cura, na verdade, é o próprio caminho traçado em busca de tal objetivo.

Festival de Curitiba

Até poderia deixar aqui as informações de horários e preços do espetáculo. Mas os ingressos para a última sessão já se esgotaram. E isso não me surpreende nenhum pouco.

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Fé como uma forma de “Cura””

  1. Alexandro Muhlstedt

    Ana

    De fato, o espetáculo deixa o espectador inebriado. A Cura traz reflexões importantes, por meio de movimentos e domínio absoluto do corpo. Uma sincronia perfeita que lava a alma.

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