Demorei para ver “Emancipation”, da Apple TV. Não por falta de tempo, mas é preciso ter algum preparo, como mulher negra, para visitar os pântanos da escravidão.
Antes disso li em alguns sites críticas sobre o filme. Um deu dois ovos, outro três tangerinas. Outros falaram do ritmo arrastado do filme. Etc.
Uma crítica branca adotando comportamentos brancos e que não consegue esquecer do famigerado tapa que Will Smith desferiu em Chris Rock na cerimônia do Oscar em 2022.
O tapa norteia a crítica, aliado ao racismo da academia e à má vontade de enxergar a escravidão como ela foi: cruel. Duas horas não são nada para falar de séculos de abuso contra população preta nos Estados Unidos, mas para a crítica branca aparentemente é muito tempo.
Vamos ao filme
“Emancipation” é dirigido por Antoine Fuqua (“Dia de Treinamento”), um diretor negro, o que dá um olhar mais apurado para a produção.
Will Smith vive Whipped Peter, escravizado que conseguiu fugir e foi fotografado pelo Exército dos Estados Unidos. A imagem mostra cicatrizes terríveis nas costas dele, decorrentes dos abusos físicos sofridos por escravagistas brancos.
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Eu já vi muita coisa feita por Will Smith (inclusive estou numa espécie de maratona para ver toda obra). E ele não faz coisas ruins, mas “Emancipation” o coloca em outro patamar porque o ator mesmo dizia que dificilmente trabalharia em produções que envolvessem a temática de escravização. Ainda bem que mudou de ideia.
Sempre imagino se essas produções têm o mesmo impacto em gente branca, que é beneficiária direta da escravização da população negra. Não tenho certeza de que compreendem exatamente como essas feridas são dolorosas. Sigamos.
Peter consegue fugir pelos pântanos da Louisiana e chegar até uma base do Exército de Abraham Lincoln, acreditando que, enfim, estaria livre. Como era habitual, pessoas negras eram “recrutadas” para lutar com a União, abolicionista.
Durante o recrutamento a foto famosa (veja abaixo) foi feita. O filme reproduz a cena histórica e é impressionante a semelhança de Will com Peter (que na verdade se chamava Gordon). A foto é de 1863. Peter, que inspirou o filme, morreu em 1907.
Ano passado o ator entrou num “projeto” de emagrecimento e compartilhou muito da rotina nas redes sociais. A diferença física é muito evidente e demonstra a dedicação de Will em dar vida para Peter.
Will Smith tem uma atuação sólida e dedicada, marcas que já são características e que lhe renderam o Oscar pela atuação em “King Richard”. Embora esteja banido da cerimônia do Oscar por dez anos após o incidente com Rock, uma indicação por “Emancipation” não seria exagero – mas nós sabemos que a academia é racista.
Um dos acertos do filme é demonstrar a contradição dos cidadãos brancos de bem com a escravização. Cristãos, orando e agradecendo a Deus pela refeição em um minuto, enquanto no outro minuto caçam seres humanos como animais.
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As cenas de guerra também são muito plásticas e para quem gosta de história, dá uma pincelada interessante sobre a guerra e retrata o período da Guerra Civil.
Spoiler
“Emancipation” é um filme necessário para se ter um lampejo do que foi a escravização na América do Norte. Lá, assim como no Brasil, houve uma relativização da gravidade do processo escravocrata e Fuqua acerta em demonstrar de forma didática a barbárie a qual foram submetidas as pessoas negras.
Conforme o filme ia avançando, fiquei esperando o momento em que Peter seria agredido (SPOILER A SEGUIR), no entanto, isso não acontece.
Interessante essa abordagem porque tudo o que o personagem passa para conseguir sua liberdade é muito sofrido e ainda assim parece ser menos dolorido do que o que provocou as cicatrizes nas costas. Não representar o momento de açoite é um ato de respeito à memória de Peter, que se tornou um símbolo abolicionista em todo mundo.
Emancipation
“Emancipation” está disponível na Apple TV, gratuitamente. Para isso basta usar o link disponibilizado pelo ator Will Smith em seu perfil no Instagram.
Filme incrível. Uma verdadeira regressão ao passado sombrio da escravidão na América do Norte. Destaque para a fotografia do filme que mostra o misterioso pântano da Louisiana com referências na cultura africana voodoo.